Uma vez mais, em um intervalo de dez anos, o continente latino-americano passa por um golpe de Estado. Após Honduras, Paraguai e Brasil, agora é a Bolívia que tem sua ordem constitucional quebrada, e, assim como nas tenebrosas décadas de 1960 e 1970, com a participação das forças armadas.
No momento da escrita deste artigo, contudo, camponeses, mineiros, indígenas originários, ou seja, as diversas frações das classes populares que sustentavam o governo Evo, recuperavam o controle das ruas, bem como o MAS/IPSP (partido de Evo Morales) voltava a dirigir a Câmara e o Senado. Portanto, o êxito do golpe de Estado permanece indefinido. Porém, algumas considerações podem ser apontadas.
Durante o governo Evo, o país passou pela nacionalização do petróleo e gás, pela criação de empresas estatais em setores estratégicos (tal como telecomunicações, aviação civil, etc.), elevação do salário mínimo e políticas de transferência de renda. Quando a economia saiu do controle das multinacionais para estar mais de 40% sob controle do Estado, os aspectos socioeconômicos do país transformaram-se completamente. Em 14 anos, a pobreza caiu de 38 para 15%; a diferença entre mais ricos e mais pobres caiu de 130 para 45 vezes; o Estado se “indianizou” – mais de 50% da burocracia estatal passou a se identificar com povos e nações indígenas originários, além de parlamentares, juízes, etc. Formas de auto-governo, justiça indígena e idiomas, originários passaram a compor o repertório estatal.
Mas, ao fazê-lo, o governo entrou em conflito com os interesses econômicos e geopolíticos dos Estados Unidos, de grandes multinacionais e elites locais. Para estes, é fundamental que as classes trabalhadoras sejam superexploradas, que as riquezas produzidas pelo país irriguem multinacionais; que riquezas nacionais e direitos sejam convertidas em mercadorias e serviços.
Tais atores, ao lado de um setor médio que se ampliou justamente em decorrência das transformações que o país passou, protagonizaram o golpe de Estado. Ante a tal processo, é preciso reafirmar que não bastam avanços jurídicos, econômicos e sociais, situados no campo da distribuição. É fundamental que o cerne do sistema capitalista seja atacado, que se fortaleçam experiências de fábricas ocupadas, de trabalho associado; que se desenvolva a organização política dos trabalhadores, que se supere o predomínio do valor de troca nas relações sociais nas cidades, a partir de iniciativas que centralizem o valor de uso – na cultura, na arte, nos espaços públicos, na mobilidade, etc. Ou seja, não há um caminho para a transformação de nossos países que não uma transformação radical, socialista da sociedade.
*Daniel Araújo Valença, professor do curso de Direito da UFERSA e coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – Gedic.
Edição: Isadora Morena