Butiquim, ou boteco, é aonde se tomam drogas, entre elas o vinho, a cerveja
Para Andrea Werkema, Juliana Gambogi e Beatriz Lessa
Há alguns anos passei uma temporada em Belo Horizonte, capital mineira. Já havia ido à cidade diversas vezes em diferentes ocasiões desde muito jovem mas, de certa maneira, nunca tinha entendido a cidade. Tive alguns lampejos de lucidez e uma pista muito boa quando vi que vendiam um tutu de feijão com monte de torresmos cheirosos e galantes no zoológico. Mas guardei o cheiro, a imagem e a gula em algum lugar escondido do cérebro.
Nas viagens de juventude à cidade, passava pelas avenidas largas, comia em diferentes lugares, falava com muitas pessoas, mas o coração pulsante de BH parecia adormecido para mim. Procurei dados históricos e geográficos e achei muitas informações interessantes: que a cidade havia sido planejada no final do século XIX pelos engenheiros Aarão Reis e Francisco de Paula Bicalho; que foi inaugurada em 12 de dezembro de 1897; que ficava exatamente no centro geográfico do Estado, a 100 km da antiga capital, Ouro Preto. Mas não adiantou. Meu coração de historiadora ficou satisfeito, mas eu ainda não entendia a cidade nem seus habitantes.
Até que, há dois anos, fui passar mais tempo, 10 dias de férias, com absolutamente nada para fazer a não ser passear pelas alamedas projetadas e arborizadas da cidade. Fui acompanhando o marido em um congresso de literatura. Aproveitava o embalo da viagem para lançar um pequeno livro de ensaios que havia escrito, Toda comida tem uma história.
Era outubro, numa primavera quente e nublada, mas sem muita chuva. Na janela do quarto do hotel, via a praça da Liberdade, com suas alamedas em estilo francês, inspiradas nos jardins do Palácio de Versallhes, na França. A praça fica no ponto mais alto do que seria a antiga sede dos prédios públicos mineiros – e o congresso estava acontecendo na Biblioteca Pública Antônio Luís de Bessa, inicialmente projetada Oscar Niemeyer para compor com os outros prédios administrativos do lugar.
Eu não assisti ao congresso. Fiquei vagando pela cidade, subindo e descendo ruas no que eu considero o maior luxo dos tempos em que vivemos: o tempo. O tempo para não fazer nada de útil.
Nesses sobes e desce, topei com um monumento que já conhecia, mas nunca tinha me atinado para o significado das palavras inscritas nele, a obra do poeta e antigo vereador da cidade Rômulo Pais: “A minha vida é esta, subir Bahia e descer Floresta.". A rua era aquela mais mineira das ruas , rua sobre a qual Carlos Drummond de Andrade escreveu em 1930: “Eu conhecia a Rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um ar de importância que irritava as outras ruas da cidade”.
Achei a rua feliz e animada, ligando o centro administrativo ao centro comercial da cidade. Achei ela mais feliz ainda porque ficava num edifício estranho, mesmo lugar aonde era a livraria que faria o lançamento do livro, a livraria e sebo da Crisálida. O prédio era o edifício Maletta. Já volto a ele.
Todas as noites saía pelas ruas da cidade com pessoal do congresso. Congressos são assim: um monte de pesquisas incríveis e interessantes e muitos encontros etílicos e gastronômicos. Até engorda. Mas eu, que ficava andando, não me sentia culpada. Porque realmente a culpa gastronômica foi grande naqueles dias de ócio e andanças pela cidade. Cachaças, linguiças, tutus, arrozinhos novinhos, pasteizinhos, bolinhos, couves crocantes e verdinhas, farofas incríveis, angus, quiabos, rabadas, feijões fresquinhos, empadinhas, torresmo, lombinho, peixinhos da horta, bochechas de porcos, e mais cachaça.
Realmente, aqueles dias precisaram de quilômetros e quilômetros de Belo Horizonte. As comidas, que já são excepcionais normalmente, ganharam o tempero extra das férias.
O edifício Maletta foi construído no mesmo terreno do antigo Grande Hotel de Belo Horizonte. É um prédio dos anos 1950, cheio de pilastras modernistas, seus apartamentos abrigam estudantes animados e a sobreloja é lotada de bares, enfileirados, um depois do outro. Entre os muitos lugares que íamos depois das discussões, acabávamos a noite no Maletta, e depois subindo a Bahia no sereno da madrugada, quase chovendo, para voltar ao hotel na Praça da Liberdade.
E foi lá que o Oséias, editor e dono da livraria Crisálida, me disse algo que mudaria a minha visão da cidade, me abriria as portas entendimento e encheria meu coração: “vamos botecar, querida”. Mas ora, ora ora. Pisquei. Num pulo, num segundo e numa frase, o substantivo relativo a lugar em que se come todas aquelas maravilhas se tornou um verbo. Do substantivo botequim fomos ao verbo botecar. E parece que o verbo virou um festival da cidade, mas essa é outra história.
Como sempre faço voltei aos dicionários antigos para saber a origem da palavra botequim, o substantivo. Fui do Dicionário do Raphael Bluteau, do começo do século XVIII e achei uma definição interessante. Bottequim ou butiquim, o substantivo, o lugar das delícias e dos amigos, vem de botica. E botica vem de bote que, em castelhano, significa vaso de barro, vidrado, redondo e alto que os boticários guardam as drogas e xaropes para o restabelecimento da saúde -- uma farmácia nos dias de hoje. Mas a palavra, segundo o dicionário, também, pode vir do francês “boutique”, lugar aonde se vendem toda a espécie de mercadorias. O dicionarista acaba por entender que a palavra vem de butica e boutique, os dois sentidos combinados, e que guarda medicamentos e mercadorias. E, para meu espanto e compreensão, nos seus muitos sentidos podia ser entendida como Taverna.
Ou seja, butiquim, ou boteco, é aonde se tomam drogas, entre elas o vinho, a cerveja e outros álcoois. Ficou claro como a luz do céu. Claro que nada desse conhecimento histórico enciclopédico mudou o espanto e a maravilha de ter ouvido a palavra virar verbo, botecar.
E assim, depois que eu rasguei meu coração pela cidade e pelas comidas de boteco, pulando de bar em bar, depois de entender, como historiadora, um pouco melhor o que significava o substantivo botequim, passei a pensar no verbo... ah o verbo botecar, esse ficou guardado pra sempre em algum lugar na rua Bahia, numa noite fria de sereno de umas madrugadas primaveris de BH.
PS: Para escrever essa coluna, que é completamente óbvia para os mineiros (me perdoem!), consultei algumas amigas da cidade. Uma dela me mandou uma música do Tavito como lembrança de uma outra época: “Rua Ramalhete”. Escrevi ouvindo a música, que recomendo como trilha sonora para a coluna.
Edição: Julia Chequer