Multiplicaram-se as denúncias de estupros e agressões contra mulheres por parte da polícia nacional e das Forças Armadas chilenas. Os abusos ocorreram em meio a manifestações populares que tiveram início no dia 18 de outubro contra a política neoliberal vigente no país desde a ditadura comandada por Augusto Pinochet (1973-1990).
De acordo com a organização internacional Human Rights Watch (HRW), desde o início das manifestações até dia 21 de novembro, o Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile (INDH) registrou 442 denúncias de tortura e maus-tratos realizadas pelas forças de segurança do presidente Sebastian Piñera. Dessas, 74 são de violência sexual contra mulheres.
Para investigar especificamente os relatos de abuso contra mulheres, uma missão do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (Acnudh) foi enviada ao país.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a cientista política Talita Tanscheit, pesquisadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA), afirma que o número crescente de abusos sexuais no Chile mostram como os processos de militarização e repressão popular atingem as mulheres de uma forma ainda mais hostil.
“Uma zona de guerra, é sempre uma zona de estupro. São duplas as repressões que vivemos. Dentre as diversas forças de dominação e repressão, utilizam a dominação sexual para impor o poder e gerar medo e pânico nas mulheres”, diz Tanscheit.
Especialista em política na América Latina, com ênfase em Brasil, Chile e Uruguai, ela frisa que, em situações nas quais a violência é generalizada, a violação sexual recai historicamente sobre o gênero feminino.
“A violência contra as mulheres em conflitos sociais e políticos sempre atinge nossos corpos. É um controle muito específico que nos acomete, que gera outros tipos de dores e comportamentos, que diz respeito a outras decisões que temos que tomar. Se vamos continuar indo às manifestações ou não, por exemplo. É muito doloroso e marcante”, analisa.
Feminicídio
As chilenas também têm sido vítimas de assassinatos e sequestro por parte dos carabineros, instituição de polícia ostensiva do Chile. Em meados de novembro, a fotógrafa Albertina Martínez, que nas últimas semanas havia se dedicado a registrar casos de violência policial durante os protestos, foi encontrada morta no apartamento onde morava, no centro de Santiago.
No local, foram encontradas diversas manchas de sangue e uma série de lesões no corpo de Albertina. A principal linha de investigação do Ministério Público do país aponta a hipótese de homicídio.
Carolina Muñoz Manguello é outra jovem que está desaparecida desde o dia 22 de novembro. Na última vez que foi vista em público, estava sendo presa por carabineros durante protesto contra Sebastian Piñera. Imagens registraram o momento em que quatro policiais a empurraram a para dentro de um veículo militar usado para deter manifestantes.
O caso de Carolina tem semelhança com o assassinato Daniela Carrasco. A artista de rua também foi vista pela última vez quando foi presa pela polícia chilena durante a vigência do Estado de Exceção decretado por Piñera logo no início dos protestos. Cinco dias depois, Carrasco foi encontrada morta, com sinais de violência sexual em seu corpo, enforcada e pendurada em uma cerca perto da casa em que morava.
“Quando se desaparece com uma mulher, mandam um recado para outras: 'Olha o que vai acontecer, você pode ser a próxima'. 'Você vai pra rua? Pode ser a próxima a ser estuprada'. [É] um mecanismo de tortura muito parecido com que a ditadura militar fazia com as mulheres, os relatos são muito próximos”, comenta Talita Tanscheit.
“El violador eres tu”
No último dia 25, data que marca o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, o coletivo feminista Lastesis realizou uma performance em seis pontos de Santiago, capital chilena.
Em meio aos protestos contínuos contra a política neoliberal de Piñera e o crescente relatos de estupros, as imagens de centenas de chilenas cantando “Un violador en tu camino” (Um estuprador no seu caminho, em tradução livre) ganharam o mundo.
“O patriarcado é um juiz, que nos castiga por nascer. E nosso castigo é a violência que você não vê: o feminicídio; a Impunidade para o assassino; é a desaparição; é o estupro. E a culpa não era minha, nem de onde eu estava, nem de como me vestia. O estuprador era você. O estuprador é você. São os pacos [policiais]. Os juízes. O Estado. O presidente. O Estado opressor é um macho estuprador”, diz a letra da performance.
Coletivos feministas em diferentes cidades como Cidade do México, Bogotá, Barcelona, Paris, Madri, Berlim, Londres, Nova York e Istambul repetiram a coreografia do coletivo Lastesis e cantaram a música em repúdio à violência de gênero.
As mulheres que participaram da intervenção usam uma venda sobre os olhos com o objetivo de simbolizar a cegueira da sociedade e da Justiça diante de casos de violência, mas também quanto para relembrar os mais de 200 manifestantes chilenos que, desde 18 de outubro, foram atingidos nos olhos por balas de borracha lançadas pela polícia.
Para Tanscheit, os episódios de estupro e agressões contra as mulheres são também uma resposta conservadora contra a ascensão do movimento feminista no país.
A professora no Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) cita que o ato do 8 de março de 2018 foi o maior ato popular desde a redemocratização do país.
Ela conta ainda que estava no Chile quando a vereadora Marielle Franco foi brutalmente assassinada em 14 de março de 2018 e que os atos em sua memória também contaram com ampla participação popular.
“É um fenômeno latino americano. O feminismo está no centro do debate político. No Chile não seria diferente”, observa Tanscheit, ressaltando a força política e capilaridade dos atos feministas do dia 25 de novembro.
“A resposta do Estado ocorre na medida em que o feminismo se tornou um tema incontornável. Não há mais possibilidade de debater política e desigualdade, e questionar a ordem neoliberal, sem abordar a profunda desigualdade entre homens e mulheres, sem ver o feminismo como centro desse debate”.
Brutalidade policial
Em visita a Valparaíso e Santiago em novembro, a Human Rights Watch encontrou evidências de que a polícia usou força excessiva para responder aos protestos populares e feriu milhares de pessoas. Segundo a organização, de 18 de outubro a 22 de novembro, 11.564 foram feridas durante as manifestações, sendo que mais de 1.100 tiveram lesões moderadas ou graves. Mais de 15 mil pessoas foram detidas, no total, e 23 morreram.
Em relatório, a HWR também constatou que o uso de espingardas de chumbo foi a principal causa das mais de 220 lesões oculares documentadas pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos chileno.
Um mês após o primeiro dia de manifestações de rua, o Ministério da Saúde do país informou que 16 pessoas perderam a visão de um olho e 34 sofreram lesões oculares graves que podem resultar em perda parcial ou total da visão, após repressão dos carabineros.
“O que é realmente assustador é o nível de repressão, torturas e assassinatos em um país que sempre se vangloriou por ser o país mais democrático da América Latina da América Latina, [o] exemplo latino-americano para o mundo. Eu acho que isso trouxe à tona que não é bem assim e que qualquer questionamento a ordem neoliberal tem como resposta uma violência policial e das Forças Armadas muito forte, muito contundente, e com o apoio total e absoluto da presidência da república, o que torna a situação ainda mais grave”, critica Talita Tanscheit.
Edição: Julia Chequer