Coluna

Criminalização do funk: histórias da dança da morte em Paraisópolis

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A viela onde os jovens foram acuados pela PM
A viela onde os jovens foram acuados pela PM - Pedro Stropasolas
O Estado é o responsável pela violência letal que produz

Por Marilia Lomanto Veloso.

 

"O problema é que a diversão é uma coisa extremamente revolucionária". (Denise Garcia)

Paraisópolis está de luto. Chora sangue e grita de dor a partir do seu lugar de fala e de vida de milhares de corpos identificados que “se pensam”, “sujeitos de direito a cantar, a bailar, a sorrir, ainda que despojados das políticas públicas que deveriam identificar esses lugares como consequência da reconfiguração do espaço geográfico da cidade, apropriada por gente branca e seus altos prédios que circulam a pobreza e dela se utilizam para seus serviços, mas não toleram o barulho dos sons e o cheiro de gente que exala das carnes jovens, pobres e de maioria negra que busca, na música e na dança, expressar sua cultura. Isso é permitido apenas às elites dos arranha-céus.

Nós escutamos os lamentos das famílias, da comunidade. Precisamos deixar explodir nossa tristeza, indignação, repulsa, vergonha, que afloram diante da morte prematura e institucionalizada de jovens, sob o peso de pés que corriam sem ter para onde, bloqueados pela ação intencionalmente perversa e doentia de policiais militares e pela criminosa política de controle social e de contenção da jovialidade das populações que se divertem nos ambientes onde vivem, porque não têm acesso aos espaços onde outra gente de idade e sonhos semelhantes pratica idênticas manifestações culturais, sob o olhar indulgente e protetivo do mesmo aparato que mata os corpos “indesejáveis”.

Um baile funk é a representação do estrondoso fosso socioeconômico que a cada momento tensiona as relações pessoais e coletivas, segrega parcela do contingente social, provoca modos alternativos de resistência que animam as forças de segurança, sempre a serviço da lei e da ordem estabelecida pelo poder, a intervenções truculentas e indisciplinadas que terminam (quase sempre) em tragédias que não só desacreditam as instituições como fatalizam indivíduos e comunidades, como um todo. Mais grave, quando têm à atribuição constitucional de preservar a vida, a liberdade e a segurança de todas as pessoas, indiscriminadamente.

A interpretação jornalística, um embuste também hegemônico e aliado do capital, trata de associar a violência, os desvios de conduta, a traficância ilícita a populações vulneráveis, dentre as quais, a juventude que frequenta as baladas “os proibidões”, o funk. Esse impulso seletivista, preconceituoso e racista se expande para as decisões judiciais, onde juízes e promotores enxergam mais severamente e punem com maior rigor quem “subvive” na periferia.

Nilo Batista, vice-governador, secretário de Justiça e chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro em 1995, que organizou banca de advogados, em 2005, para a defesa de MCs, em resposta a jornalista afirmou: “A única coisa que eu sei é que a Constituição garante a livre expressão do pensamento e a livre expressão artística. Não me compete dizer que essa arte pode ou não pode. Isso é o que vocês estão fazendo”. No Rio de Janeiro, Antonio Pitanga, por lei municipal, Marcelo Freixo e Wagner Montes no âmbito estadual, com o ativismo de políticos e intelectuais, construíram leis que definem o funk como “movimento cultural de caráter popular” e os artistas do funk, “agentes de cultura popular”.

O funk é objeto que atrai também o ambiente acadêmico. Danilo Cymrot, em instancia dissertativa, percebe o baile funk como um “ato político”, que aproxima as diversas classes sociais de jovens que frequentam tais eventos, conhecem as favelas e desmistificam o preconceito de território marcado pela violência. Sua pesquisa aponta no funk uma ameaça porque se identifica com pobreza, negritude. As narrativas de suas músicas, mesmo não sendo essa a intenção, são denúncias das desigualdades, cânticos de desejos e valores, questionamentos sobre a democracia racial e um brado por democratização do espaço público. Daí o necessário freio nas aglomerações, a vigilância dos guetos “para impedir a construção de laços e formas de cooperação social e política que possam dar corpo à rebelião”.

Esse o contexto onde policiais militares, fundamentados no discurso “protocolar” de perseguição a suspeitos, promoveram a morte de nove jovens, em um lugar onde cerca de cinco mil pessoas se movimentavam ao som do funk, onde corpos suados expressavam a liberdade momentânea de extravasar os conflitos e as desigualdades, o desemprego e os preconceitos, as rotinas de busca por espaços onde pudessem ter respeitada sua dignidade de pessoa humana.

Paraisópolis é quase uma cidade. Um conglomerado da Zona Sul, onde saltam contradições entre o luxo dos condomínios do Morumbi e a pobreza de quase cem mil habitantes espalhados por ruas e vielas de Paraisópolis. Uma delas, serviu de “curral” para a ação cruenta dos policiais militares, em episódio que faturou as mortes de quem dançava ao som do funk. Esse não é um ato isolado, mas ingrediente de um proceder histórico e cultural da polícia militar contra as populações vulneráveis. A ação, além de inerme, escancara o despudor no comportamento de uma política de segurança obscena, elaborada por um governo que ou é perverso por essência ou é do tipo que a doutrina criminológica mais recuada classifica como delinquência ocasional ou ainda, sintomática, ou quem sabe, delinquência neurótica, ou mais grave, decorrente de sujeitos com “personalidade mórbida”, mais especificamente, com “defeito constitucional ou formativo de caráter”.

O Estado é o responsável pela violência letal que produz. Ponto. O Estado é que produz a criminalidade. Ponto. O Estado encurralou, permitiu que fossem esmagados e deixou no chão nove corpos que bailavam a juventude em Pairasópolis. Ponto final.

* Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.

Edição: Daniel Giovanaz