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Essa gente

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"No livro, as personagens funcionam como fios condutores de amostragem das fraturas de nosso tecido social"
"No livro, as personagens funcionam como fios condutores de amostragem das fraturas de nosso tecido social" - Mauro Pimentel/AFP
Chico Buarque fugiu do maniqueísmo ao escrever sobre o Brasil atual em seu livro

Quem me conhece bem, ou até mais ou menos, já sabe que gosto de ler quase tanto quanto gosto de dançar, de samba e cinema, e mais até que de vinho, sorvete e açaí, o que não é pouco.

Mas não sei dizer que tipo de leitora sou, nessas definições-padrão que rolam por aí.

Há livros que me consomem de tal forma que terminar de lê-los vira um suplício: desmarco compromissos, fico ansiosa em voltar para casa e ler a próxima página, e perco noites inteiras de sono.

Ou, pior, cometo a insanidade ou indelicadeza de levá-los a lugares onde absolutamente não deveria, apenas para poder adiantar mais um pouco a leitura. Isso é o mais comum.

Há outros que leio aos poucos, sorvendo as letras, quase lamentando que cheguem ao fim. Não há muita explicação para a ausência de ansiedade, já que pode acontecer com um romance ou uma análise técnico-jurídica sobre um tema qualquer.

O novo livro do Chico Buarque esteve nessa segunda possibilidade. Ganhei da Carol há uns bons dias, quando chegou às livrarias, e fui lendo no ritmo do protagonista: em apontamentos diários, ou quase. Acabei.

Eu li os livros anteriores do Chico. Todos eles. Os críticos literários costumam aproximar ou afastar as similitudes das narrativas, dos contextos e das formas, o que eu particularmente acho chato. Não é que dá para esquecer os outros romances e suas abordagens, mas nunca penso neles ao ler um livro novo. De autor algum. Exceto quando o próprio assume a continuidade de eventos de um para outro, como Saramago em seus ensaios sobre a cegueira e a lucidez.

E já que não sou crítica literária, ainda bem, e não tenho qualquer compromisso de coerência e conhecimento profundo de conceitos adotados pelos intelectuais dessa área, li “Essa Gente” como um texto único, que não se relaciona com outros, exceto por ser obra da mesma mente.

E escrevo sobre ele a partir de minha percepção leiga, simples e desafetada, já que, definitivamente, não vou influenciar ninguém, positiva ou negativamente, a ler o livro. Nem teria tamanha pretensão.

Paradoxalmente, talvez pela história se passar no Rio de Janeiro, no bairro onde Chico Buarque mora, e o protagonista ser um escritor, pareceu quase impossível não tentar buscar semelhanças entre criador e criatura, autor e personagem, o que perdura em mim até o final, e de volta ao meio. Ao mesmo tempo, e complementarmente, várias passagens me recordaram naturalmente trechos de canções buarqueanas, que talvez não tenham propositadamente qualquer vínculo, ou nunca o saberei.

A narrativa de diário, que dá, de início, alguns saltos para trás, e volta ao presente para construir a linha discursiva da novela do protagonista, ocorre dentro dos três últimos anos da história do Brasil, esses mesmos que costumamos abordar em nossas análises de conjuntura, como uma quebra de paradigma: 2016, o ano em que vivemos um impeachment – e a mim é impossível esquecer que o vivi por dentro – e a democracia entrou em uma espécie de “pausa”, como já fora dito por um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, é quando começa a história de Manuel Duarte, encontrado morto em seu apartamento no Leblon, no dia 19 de setembro último, quando o Brasil se encontra sob um governo com características profundamente conservadoras e ditatoriais.

Escrevendo sobre o Brasil atual, que caminho fácil e tentador seria para Chico assumir, como autor, uma posição maniqueísta e dual.

Se assim fosse, perderíamos, como leitores, sua inteligente observação de uma sociedade complexa e conflituosa, a partir de fragmentos inteiros de realidade que nos apresenta. E que equívoco seria deduzir que, por não ter a obviedade de um produto de consumo direto e fácil, como um artigo que pretendesse fazer crítica social, a advertência não estaria lá.

De fato, no livro, as personagens funcionam como fios condutores de amostragem das fraturas de nosso tecido social, como na evidência do bullying escolar, no espancamento gratuito desferido por um “cidadão de bem” contra um homem em situação de rua ou nos conflitos de indivíduos ou coletivos com a polícia, que sempre terminam em morte, além das diversas menções a eventos reais, em um exercício subjetivo de provocação e aproximação da ficção aos fatos ocorridos, como os 80 tiros dados pela polícia a um carro matando um músico negro, mastigados pelo cachorro fictício ao comer o jornal.

Chico assume o risco ao escrever em um formato diferente na linguagem, que tem como resultado uma leitura fluida. A trajetória construída, com a cronologia que vai sendo organizada, tem o amparo de outras personagens que por alguns poucos momentos se apropriam da narrativa, como as duas ex-mulheres de Duarte, por meio de suas cartas, ou uma vizinha que intenta retirá-lo do prédio. Uma criatura arrogante que sintomaticamente é uma juíza, em um país em que nada parece acontecer sem a participação de juízes.

Voltando ao ponto de intersecção, uma frase de Chico Buarque sobre o Rio de Janeiro, que sempre me vem quando contemplo a cidade de um ponto alto, e que para mim define de forma definitiva sua assombrosa beleza, em sua contradição inexorável, é da música Carioca: “o poente na espinha das tuas montanhas quase arromba a retina de quem vê...”

Quando Duarte diz, após narrar mazelas urbanas: “estarei condenado a amar e cantar a cidade onde nasci” há um entrelaçamento definitivo entre os dois. E foi para as exatas páginas 48 e 49, em que o diário registra 20 de fevereiro de 2019, que voltei quando cheguei ao fim e descobri que o romance escrito por Duarte sumira misteriosamente do computador após sua morte.

E li novamente, após aquela sequência de declaração de amor ao Rio, “meu livro, meu livro, meu livro” com a certeza, que nunca terei de fato, que o romance escrito por Manuel Duarte durante sua epopeia, foi descaradamente roubado por Chico Buarque, e se chama “Essa Gente”.

Edição: Rodrigo Chagas