“Muitos no Departamento de Estado perderam todo o respeito por Mike Pompeo – por um bom motivo. Seu comportamento é uma das coisas mais vergonhosas que já vi em 40 anos de cobertura da diplomacia americana.” -- Thomas Friedman, “Mike Pompeo: o último da classe em integridade”, The New York Times, publicado em português pela Folha de S. Paulo em 21 de novembro de 2019
Num primeiro momento, pensou-se que a direita retomaria a iniciativa e, se fosse necessário, passaria por cima das forças sociais que se rebelaram e surpreenderam o mundo durante o “outubro vermelho” da América Latina. E, de fato, no início do mês de novembro, o governo brasileiro procurou reverter o avanço esquerdista, tomando uma posição agressiva e de confronto direto com o novo governo peronista da Argentina.
Em seguida interveio, de forma direta e pouco diplomática, no processo de derrubada do presidente boliviano, Evo Morales, que havia acabado de obter 47% dos votos nas eleições presidenciais da Bolívia. A chancelaria brasileira não apenas estimulou o movimento cívico-religioso da extrema direita de Santa Cruz, como foi a primeira a reconhecer o novo governo instalado pelo golpe civil-militar e dirigido por uma senadora que só havia obtido 4,5% dos votos nas últimas eleições.
Ao mesmo tempo, o governo brasileiro procurou intervir no segundo turno das eleições uruguaias, dando seu apoio público ao candidato conservador, Lacalle Pou – que o rejeitou imediatamente – e recebendo em Brasília o líder da extrema direita uruguaia que havia sido derrotado no primeiro turno, mas que deu seu apoio a Lacalle Pou no segundo turno.
Mesmo assim, ao fazer-se um balanço completo do que passou no mês de novembro, o que se constata é que uma expansão da “onda vermelha” havia se instalado no mês anterior no continente latino-americano.
Nessa direção, e por ordem, o primeiro que aconteceu foi a libertação do principal líder da esquerda mundial, segundo Steve Bannon, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se impôs à resistência da direita civil e militar do país, graças a uma enorme mobilização da opinião pública nacional e internacional.
Em seguida aconteceu o levante popular e indígena da Bolívia, que interrompeu e reverteu o golpe de Estado da direita boliviana e brasileira, impondo ao novo governo instalado a convocação de novas eleições presidenciais com direito à participação de todos os partidos políticos, incluindo o de Evo Morales.
Da mesma forma, a revolta popular chilena também obteve uma grande vitória com a convocação, pelo Congresso Nacional, de uma Assembleia Constituinte que deverá escrever uma nova Constituição para o país, enterrando definitivamente o modelo socioeconômico herdado da ditadura do General Augusto Pinochet. E mesmo assim, a população rebelada ainda não abandou as ruas e deve completar dois meses de mobilização quase contínua, com o alargamento progressivo da sua “agenda de reivindicações” e a queda sucessiva do prestígio do presidente Sebastián Piñera, que hoje está reduzido a 4,6%. Neste momento, a população segue discutindo nas praças públicas, em cada bairro e província, as próprias regras da nova constituinte, prenunciando uma experiência que pode vir a ser revolucionária, de construção de uma constituição nacional e popular, apesar de ainda existirem partidos e organizações sociais que seguem exigindo um avanço ainda maior do que o que já foi logrado.
No caso do Equador, o país que se transformou no estopim das revoltas de outubro, o movimento indígena e popular também obrigou o governo de Lenín Moreno a recuar do seu programa de reformas e medidas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e aceitar uma “mesa de negociações” que está discutindo medidas e políticas alternativas junto com uma agenda ampla de reivindicações plurinacionais, ecológicas e feministas.
Mas além de tudo isso, o mais surpreendente acabou acontecendo na Colômbia, o país que vem sendo há muitos anos o baluarte da direita latino-americana e é hoje o principal aliado dos Estados Unidos, do presidente Donald Trump, e do Brasil do capitão Jair Bolsonaro, no seu projeto conjunto de derrubada do governo venezuelano e de liquidação dos seus aliados “bolivarianos”. Depois da vitória eleitoral da esquerda, e da oposição em geral, em várias cidades importantes da Colômbia nas eleições do mês de outubro, a convocação de uma greve geral em todo o país, no dia 21 de novembro, deslanchou uma onda nacional de mobilizações e protestos que seguem contra as políticas e reformas neoliberais do presidente Iván Duque, cada vez mais acuado e desprestigiado.
Rejeição ao neoliberalismo
A agenda proposta pelos movimentos populares varia em cada um desses países, mas todas elas têm um ponto em comum: a rejeição das políticas e reformas neoliberais, e sua intolerância radical com relação às suas consequências sociais dramáticas – que já foram experimentadas várias vezes através de toda a história da América Latina – e que acabaram derrubando o seu próprio “modelo ideal” chileno.
Frente a essa contestação quase unânime, duas coisas chamam muito a atenção dos observadores: a primeira é a paralisia ou impotência das elites liberais e conservadoras do continente, que parecem acuadas e sem nenhuma ideia ou proposta nova, que não seja a reiteração de sua velha cantilena da austeridade fiscal e da defesa milagrosa das privatizações que vêm fracassando por todos os lados; e a segunda é a relativa ausência ou distanciamento dos Estados Unidos frente ao avanço da “revolta latina”. Porque mesmo quando tenham participado do golpe boliviano, fizeram com uma equipe de terceiro time do Departamento de Estado, e não contaram com o entusiasmo que o mesmo departamento dedicou, por exemplo, à sua “operação Bolsonaro” no Brasil. Ao mesmo tempo, esse distanciamento americano tem dado maior visibilidade ao amadorismo e à incompetência da nova política externa brasileira, conduzida pelo seu chanceler bíblico.
Luta interna do establishment
Para entender melhor esse “déficit de atenção” americano, é importante olhar para alguns acontecimentos e desdobramentos internacionais dos dois últimos meses, e que se encontram em pleno curso.
É óbvio que não existe uma relação de causalidade necessária entre esses acontecimentos, mas com certeza existe uma grande “afinidade eletiva” entre o que está passando na América Latina e a intensificação da luta interna dentro do establishment norte-americano, que alcançou um novo patamar com a abertura do processo de impeachment contra o presidente Donald Trump, envolvendo diretamente sua política externa. E tudo indica que essa briga passou para outro patamar de violência depois que Trump demitiu John Bolton, seu Conselheiro de Segurança Nacional. Essa demissão parece ter provocado uma inusitada convergência entre a ala mais belicista do Partido Republicano e do “deep state” norte-americano e um grupo expressivo de congressistas do Partido Democrático que foi responsável pela decisão de julgar o presidente Trump. É muito pouco provável que o impeachment se concretize, mas seu processo deverá se transformar num campo de batalha política e eleitoral até as eleições presidenciais de 2020.
Além disso, com o afastamento de Bolton e a intimação imediata para depor do Secretário de Estado, Mike Pompeo, desmontou-se a dupla – extremamente agressiva – que, junto com o vice-presidente Mike Pence, foi responsável pela radicalização religiosa da política externa americana nos últimos dois anos. Com isso, rompeu-se também a linha de comando da extrema direita latino-americana, e talvez tenha sido isso que deixou a descoberto seus operadores brasileiros de Curitiba e Porto Alegre, na hora em que foram desmascarados pelo site do The Intercept Brasil, como também tenha deixado a devida cobertura o pupilo idiota que eles ajudaram a instalar nas Relações Exteriores brasileiras.
Não se pode esquecer que Mike Pompeo teve papel decisivo na “trapalhada diplomática” da Ucrânia que deu origem ao processo de impeachment de Trump. Por isso, tudo o que hoje diga ou ameace o chefe do Departamento de Estado tem uma credibilidade e eficácia que serão cada vez menores, pelo menos até novembro de 2020.
Mas atenção que esse não foi o único erro nem é o único motivo da luta que divide a elite norte-americana no acirramento de sua briga interna. Pelo contrário, a causa mais importante dessa divisão está no fracasso da política americana de contenção da China e da Rússia, que não está conseguindo deter nem curvar a expansão mundial da China, e o acelerado avanço tecnológico-militar da Rússia. Duas forças expansivas que já desembarcaram na América Latina, modificando os termos e a eficácia da famosa Doutrina Monroe, formulada em 1822.
Isso pôde ser verificado recentemente com o posicionamento russo frente à crise boliviana, sobretudo com a ajuda chinesa para “salvar” os dois últimos leilões, da “cessão onerosa”, na Bacia de Campo, e da “partilha”, na Bacia de Santos, e para viabilizar – muito provavelmente – as próximas privatizações anunciadas pelo ministro Paulo Guedes. Tudo isso, a despeito e por cima das bravatas “judaico-cristãs” do seu chanceler.
Não é necessário repetir que não existe uma única causa, ou alguma causa necessária, que explique a “revolta latina” que começou no início do mês de outubro. Mas não há dúvida de que esta divisão americana, junto com a mudança da geopolítica mundial, tem contribuído decisivamente para a fragilização das forças conservadoras na América Latina. Tem contribuído também para a acelerada desintegração do atual governo brasileiro e a perda de sua proeminência dentro do continente latino-americano, com a possibilidade de que o Brasil se transforme brevemente num pária continental.
Por tudo isso, concluindo, quando se olha para frente, é possível prever algumas tendências, apesar da densa neblina que encobre o futuro neste momento da nossa história:
i) A divisão interna americana deve seguir e a luta deve aumentar, apesar de que os grupos em disputa compartam o mesmo objetivo, que é, em última instância, preservar e expandir o poder global dos Estados Unidos. Mas os EUA encontraram uma barreira intransponível e já não conseguirão mais ter o poder que alcançaram depois do fim da Guerra Fria.
ii) Por isso mesmo, os EUA se voltaram para o “hemisfério ocidental com redobrada possessividade, mas também na América Latina eles estão se enfrentando com uma nova realidade, e já não conseguirão mais sustentar a incontestabilidade do seu poder.
iii) Como consequência, será cada vez mais difícil impor à população local os custos sociais gigantescos da estratégia econômica neoliberal que eles apoiam ou tentam impor a toda sua periferia latino-americana. Trata-se de uma estratégia que é definitivamente incompatível com qualquer ideia de justiça e igualdade social, e é literalmente inaplicável em países com maior densidade demográfica, maior extensão territorial e complexidade socioeconômica. Uma espécie de “círculo quadrado”.
iv) Por fim, apesar disso, existe um enigma no caminho alternativo proposto pelas forças. E esse enigma não é técnico nem tem a ver estritamente com política econômica, porque é um problema de “assimetria de poder”. Na verdade, mesmo quando contestados, os EUA e o capital financeiro internacional mantêm o seu poder de vetar, bloquear ou estrangular economias periféricas que tentem uma estratégia de desenvolvimento alternativa e soberana, fora da camisa de força neoliberal, e mais próxima das reivindicações desta grande revolta latino-americana.
*Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, PEPI, coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou O Poder global e a nova geopolítica das nações pela Editora Boitempo em 2007; História, estratégia e desenvolvimento pela Boitempo, em 2014; e Sobre a Guerra, pela Editora Vozes Petrópolis, em 2018.
Edição: Aline Scátola