Em audiência pública realizada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), em São Paulo, nesta segunda-feira (9), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos recuou da intenção de transferir 1.049 ossadas da chamada "Vala de Perus" para Brasília.
No último dia 22 de novembro, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, ligada a pasta de Damares Alves, solicitou a transferência dos restos mortais analisados e identificados ao longo dos últimos seis anos pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para o Instituto de Pesquisa de DNA Forense da Polícia Civil do Distrito Federal, na capital federal.
A vala clandestina do Cemitério Dom Bosco foi utilizada para o depósito de cadáveres de pessoas não identificadas e de militantes assassinados pela ditadura militar (1964-1985). Acredita-se que, além dos opositores políticos ao regime, restos mortais de vítimas de chacinas e de grupos de extermínio também tenham sido depositadas no local.
A transferência foi duramente criticada pela sociedade civil e principalmente por familiares de mortos e desaparecidos, que há décadas aguardam a identificação dos corpos de seus entes. Das 1.049 ossadas, restam apenas 26% para serem analisadas.
As críticas pontuaram ainda que a mudança defendida pela pasta era motivada por questões ideológicas. O governo, por sua vez, alegou que o objetivo da transferência era diminuir os custos de armazenamento das ossadas, já que a casa usada para este fim é alugada e é preciso segurança para guardar o material analisado.
Já que a obrigação de identificação das ossadas é fruto de um acordo feito pelo Judiciário, para que a alteração acontecesse, no entanto, seria necessário uma autorização judicial.
Durante a audiência de conciliação de ontem, os familiares criticaram a transferência e denunciaram que a mudança resultaria no desmonte e na interrupção dos trabalhos. As argumentações foram endossadas pela Unifesp, pela Prefeitura de São Paulo e pelo Ministério Público.
Após quatro horas de reunião, representantes da União negaram as acusações e, pressionados, recuaram da proposta. Dessa forma, o material deve permanecer na Unifesp.
Eugênia Gonzaga, ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, comemora a decisão: “Estou muito feliz com a posição do Judiciário aqui em São Paulo, do Ministério Público. Foram firmes em dizer que não tem sentido fazer uma transferência faltando menos de um quarto do trabalho para ser realizado”, declara.
Em agosto deste ano, Gonzaga foi afastada da presidência da Comissão, criada em 1995, e substituída por Marcos Vinícius Pereira de Carvalho, assessor de Damares e filiado ao PSL.
A procuradora da República avalia que a posição favorável à manutenção do trabalho realizado pelo Caaf resulta da luta incessante dos familiares de mortos e desaparecidos, que se mobilizaram e se manifestaram.
“[Eles] sempre deixaram muito claro para qualquer autoridade que são absolutamente contra qualquer tipo de análise feita exclusivamente por órgãos oficiais, feita exclusivamente pela polícia. A ideia sempre foi criar um órgão que pudesse realizar um tipo de perícia autônoma em casos de violência do Estado. E é isso que o Caaf tem feito”, afirma Eugênia, acrescentando que a redução de custos defendida pelo governo é muito pequena perto do legado que a perícia das ossadas de Perus consolidou.
Ela ressalta o trabalho do centro forense com as Mães de Maio, familiares e amigos das vítimas dos Crimes de Maio de 2006, assim como o convênio recém-fechado entre o Caaf e o Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana (Condepe) para perícia das vítimas do Massacre de Paraisópolis.
Gonzaga considera fundamental a perícia dos corpos no momento inicial, principalmente quando estão envolvidas vítimas do Estado. Porém, na grande maioria das vezes, os responsáveis pelo processo são os próprios órgãos oficiais.
“O Caaf cumpre a expectativa de perícia independente. Espero que o projeto continue, foi feito muito investimento nesse sentido e espero que isso não se perca”.
Em março de 2018, o primeiro nome das ossadas de Perus foi identificado: Dimas Antônio Casemiro, do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), morto em 1971 pelo regime militar. Oito meses depois, o trabalho do centro forense permitiu a identificação Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), assassinado no mesmo ano.
No processo de perícia, os pesquisadores do centro forense da Unifesp realizam uma triagem nos ossos, reconstituem parte dos esqueletos, e enviam fragmentos para o laboratório International Commission on Missing Persons (ICMP), em Haia, na Holanda.
Criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) devido ao conflito na ex-Iugoslávia, a instituição é referência internacional e acumula experiência com a análise de mais de 20 mil casos de identificação humana. Centenas de amostras e fragmentos de mortos e desaparecidos da ditadura brasileira, assim como de familiares para comparação genética, já foram enviados ao ICMP para análise.
Edição: Julia Chequer