Não há incompatibilidade entre a atividade policial e os direitos humanos
Por Olímpio Rocha*
No dia 10 de dezembro de 2019, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) completou 71 anos de existência. Proclamada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a DUDH é um documento curto, com apenas 30 artigos e que eventualmente se torna alvo da ira de incautos que se metem a proferir uma série de barbaridades sem nenhum embasamento contra o que erroneamente julgam ser os direitos humanos.
A DUDH, ao lado do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos. Desde 1945, outros vários documentos e tratados internacionais de direitos humanos foram adotados e expandiram o leque do direito internacional dos direitos humanos.
Eles incluem, por exemplo, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), entre várias outras.
Dito isto, como seria finalmente possível responder o que são os direitos humanos? De forma simples, porém acertada, pode-se conceituá-los como sendo os direitos básicos que buscam garantir a todos e todas nada menos que a dignidade humana, isto é, moradia, trabalho, saúde, liberdade, educação, entre outros direitos fundamentais espraiados na DUDH e depois reproduzidos nas Constituições das respectivas nações signatárias da Declaração.
Contudo, este conceito costuma ser severamente deturpado, sendo necessário que se clarifique e se corrija uma série de erros provenientes dessas deturpações, muitas vezes oriundos da má-fé alheia, que tenta fazer crer que direitos humanos seriam só “para bandidos”, que os direitos humanos não se preocupariam com vítimas de crimes e ilícitos e, por fim, que os direitos humanos atrapalhariam a atuação das polícias. Nada disso é verdade!
Primeiro, não é verdade, obviamente, que os direitos humanos seriam só “para bandidos”. Para desconstruir essa afirmação falaciosa, é necessário que se comece questionando qual o conceito de “bandidos” dos defensores dessa ideia torta. Se, por bandido, entende-se pessoas que, eventualmente, cometeram algum crime, que fique claro, desde logo, que sim -- essas pessoas também devem ter sua dignidade respeitada. Mas não são as únicas sujeitas a tal, claro.
É compreensível, num patamar individual, que se deseje vingança por um mal que se sofra. Porém, o Estado – terceiro imparcial – não pode e não deve assumir a vingança privada do cidadão, pois o devido processo legal deve ser respeitado, sob pena de voltarmos à barbárie pré-civilizatória. Por mais vil que tenha sido determinado crime, imprescindível que seu autor tenha direito à ampla defesa e ao contraditório, princípios indissociáveis do Estado Democrático de Direito, conquistado a duras penas após o gradativo fim das monarquias absolutas.
Outrossim, pode-se dizer que essa acusação de que só os “direitos de bandidos” é que seriam respeitados é compreensível na medida em que grande parte da população pobre, negra e favelada é que se torna alvo preferencial das políticas punitivistas.
Não se trata aqui de justificar a prática de delitos, mas de constatar o óbvio: são os menos favorecidos que, muitas vezes, se veem impelidos a praticar um furto ou um assalto em nome da tentativa de sobrevivência que não lhes é minimamente garantida pelo Estado, o que os transforma em vítimas de violações assim como os que por eles são atacados.
Segundo, como consequência natural da ideia de que os direitos humanos não são exclusivos de criminosos ou praticantes de ilícitos, mas sim pertencem a todos e todas, é óbvio concluir que os defensores e defensoras de direitos humanos são, sim, solidários com a dor das vítimas de crimes e seus familiares. Porém, ao mesmo tempo, eles são conscientes que não há solução para o problema da violência se continuarmos superlotando as cadeias e unidades socioeducativas do nosso país.
Atualmente, são mais de 800 mil presos no Brasil, os quais aguardam julgamento ou cumprem penas em masmorras sem as menores condições de promover ressocialização ou mínima reflexão pra os internos, que são constantemente submetidos a práticas de tortura. Essas pessoas, inclusive, são muitas vezes obrigadas a se filiar a facções criminosas, passando a praticar crimes muitos mais gravosos do que aqueles que originalmente realizaram.
Além disso, impende salientar que os coletivos de direitos humanos, sejam eles ONGs, associações ou entidades diversas, estão sempre abertos a receber as demandas de absolutamente qualquer pessoa que os procure, a qual será atendida e encaminhada para os órgãos competentes aptos a resolver seu problema. Se for o caso, ou mesmo diretamente atendida por assessores jurídicos, psicólogos e assistentes sociais que laborem em referidos espaços.
Por fim, bom que se entenda que não há incompatibilidade entre a atividade policial e os direitos humanos, dado que, na verdade, a segurança pública também pode ser considerada um direito fundamental. O que os defensores e defensoras de direitos humanos vaticinam é que a tortura, ainda que proibida, é muitas vezes pratica por maus policiais e não pode ser tolerada pelo Estado -- adepto da necropolítica na medida em que vitima cada vez mais, como já exposto, “os pretos de tão pobres e pobres de tão pretos”, como canta Caetano Veloso.
Por conta de uma militarização exacerbada, combinada com a falta de formação educacional em direitos humanos, há uma falsa ideia que grassa, repita-se, entre maus policiais, que julga ser a violência a única viável para se combater violência. Direitos Humanos e Polícias, então, devem caminhar juntos, de forma imbricada, rumo ao fim das desigualdades sociais.
Portanto, haja vista todo o exposto, fica claro que há uma série de inverdades – para dizer o mínimo – que são espalhadas por detratores da democracia e do Estado Democrático de Direito, que insistem em detratar os Direitos Humanos e seus defensores e defensoras, que hoje comemoram os 71 anos da Declaração Universal. Espera-se que ela tenha vida ainda muito longa!
*Olímpio Rocha é advogado, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), professor universitário, Membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado da Paraíba.
Edição: Julia Chequer