Depois de quatro dias de debates, o Colóquio Internacional “Ocupação, Soberania, Solidariedade” anunciou, na última terça-feira (10), a construção de um tribunal popular para julgar os crimes cometidos pela missão das Nações Unidas no país.
O Haiti vive sob ocupação militar da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2004, após um golpe apoiado pelos Estados Unidos contra o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide. Com a instabilidade que se seguiu ao golpe, o Conselho de Segurança da ONU classificou o país como uma “ameaça à paz e à segurança internacional na região” e abriu caminho para a invasão do Haiti por 10 mil tropas de 31 países.
Nos anos seguintes, essa “missão de paz” da ONU foi denunciada por uma série de crimes, incluindo massacres, estupros e a introdução da cólera no país, levando 30 mil pessoas à morte. Até hoje, os responsáveis não foram levados a julgamento.
A intenção do encontro foi expor as pessoas e estruturas que devem ser responsabilizadas pelos 15 anos de ocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) no país e os crimes cometidos pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah).
O tribunal popular criado durante o colóquio desta semana terá a tarefa de avaliar e julgar os resultados da ocupação internacional no Haiti e promover os processos de desocupação, justiça e reparação para as vítimas da repressão, da violência sexual e da epidemia de cólera que assolou o país.
O colóquio
Realizado em Porto Príncipe, capital do Haiti, entre 7 e 10 de dezembro, o colóquio reuniu delegados de mais de 100 organizações haitianas e internacionais e foi organizado pela Plataforma Haitiana em Defesa de um Desenvolvimento Alternativo (Papda), o Escritório de Advogados Internacionais/Instituto para a Justiça e a Democracia no Haiti (BAI/IJDH) e o Movimento Haitiano de Liberdade, Igualdade e Fraternidade (MOLEGHAF).
O encontro reuniu delegados de organizações da Argentina, do Brasil, de Cuba, dos Estados Unidos, da França, da Martinica, do México, do Nepal, de Porto Rico, da República Dominicana, de Trinidad e Tobago e da Venezuela, além do próprio Haiti. Os participantes reafirmaram os laços de solidariedade, compartilharam estratégias em busca de justiça e expressaram seu apoio às vítimas e sobreviventes dos crimes cometidos pela Minustah.
O colóquio contou também com a participação de 25 convidados internacionais e 14 mesas de debates e oficinas, além de ouvir depoimentos de vítimas da ocupação, segundo a Alba Movimentos Haiti.
Entre os nomes conhecidos internacionalmente que estiveram no colóquio estão Nora Cortiñas, uma das fundadoras da organização Mães da Praça de Maio-Linha Fundadora na Argentina, Opal Tometi, uma das fundadoras da organização Black Lives Matter, dos EUA, e o doutor em relações internacionais brasileiro Ricardo Seitenfus.
Houve troca de experiências de resistência de mulheres argentinas e haitianas em contextos ditatoriais e uma mobilização com as delegações haitianas e internacionais com as organizações de vítimas da cólera na cidade para expor a impunidade que continuam a enfrentar.
Segundo a Alba Movimentos-Haiti, também foi feito um balanço sobre os processos de solidariedade desenvolvidos nas últimas décadas pelas diversas organizações, movimentos sociais e comitês de solidariedade.
No último dia, foram analisadas e debatidas as “iniciativas concretas no plano político, financeiro e comunicacional para colocar o Tribunal Popular de pé”. A corte, segundo as organizações, começará suas atividades no ano que vem e terá membros escolhidos “pelo povo haitiano, suas organizações e todas as forças sociais ativas e solidárias do mundo”.
Castigo pela liberdade
A presença de delegados de Porto Rico contribuiu para as discussões sobre o avanço de demandas pela restituição e reparação pela “dívida” cobrada injustamente e que tem representado um impacto prolongado na economia dos dois países caribenhos.
Após a luta haitiana por independência, em 1804, a França obrigou a primeira república negra do mundo a pagar pela perda de riqueza que o país colonizador “sofreu” com o fim das fazendas mantidas pela força de trabalho escravizada. A França exigiu que o Haiti pagasse 150 milhões de francos, sob ameaça de invasão militar. A nova república foi obrigada a contrair empréstimos com o antigo colonizador e, mais tarde, com os Estados Unidos. Essa dívida externa freou o crescimento econômico e afetou a própria sobrevivência do país.
Em 2003, o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide exigiu uma indenização de US$ 21 bilhões da França pelo que o país caribenho foi obrigado a pagar por sua liberdade. A exigência foi rejeitada e, no ano seguinte, Aristide foi derrubado por um golpe apoiado pelos EUA.
Os crimes cometidos contra o povo haitiano pela França, os Estados Unidos, a ONU e tropas de ocupação de todo o mundo, assim como as mobilizações populares que se organizam no país, ficam, muitas vezes, silenciadas. Em entrevista em novembro ao Brasil de Fato, o sociólogo e jornalista argentino Lautaro Rivara falou sobre a invisibilidade da luta do povo haitiano, destacando o racismo e o descaso da comunidade internacional como componentes dessa equação. Confira a entrevista aqui.
*Com Peoples Dispatch.
Edição: Aline Scátola