Impossível tirar a vista sobre o papel do povo quando da derrota da democracia
Por Martonio Mont'Alverne Barreto Lima*
Basta correr os olhos rapidamente pelos principais meios de comunicação europeus para que se constate a histórica derrota do trabalhismo do Labour Party nas às eleições recentes no Reino Unido.
Dificilmente encontraremos analistas a olharem para a sociedade britânica e sua responsabilidade – ou falta desta – quando das escolhas políticas realizadas. Há quase uma unanimidade em afirmar que o trabalhismo falhou, e devido à forte rejeição pessoal da principal liderança de Jeremy Corbin, o Labour obteve o que mereceu.
Este olhar, na verdade, é apenas revelador da situação, digamos, epistemológica da Ciência Política mundial, mas que possui sua origem na Ciência Política americana: o recurso ao descritivismo das situações políticas e sociais, com a consequente secundarização da produção de teoria política.
Raso, o descritivismo distancia-se da busca em oferecer ao público uma natureza explicativa racional dos acontecimentos. Em outras palavras: trata-se apenas de buscar compreender os fenômenos políticos por suas aparências, sem que se busque revelar com exaustão teórica a realidade subjacente da pluralidade de forças políticas concretas que conformaram os mesmos fenômenos
Passa ao largo destas análises a eventual manipulação do referendo sobre o Brexit, e, por exemplo, seus nexos com o avanço a extrema direita na Alemanha, Espanha, Itália, Hungria, Polônia. No caso britânico, o esforço para a demonização de Corbin, que seria seguido por um séquito de Corbinites, incapazes de sentirem a pulsão das ruas, foi um dos elementos sobre o qual mais se discorreu.
Se a dubiedade de Corbin sobre o Brexit era tão visível, porque outras lideranças partidárias não a corrigiram a tempo? Em tais visões, os eleitores – isto é, as sociedades -- aparecem completamente absolvidos das escolhas que fizeram.
Mesmo quando a tragédia ocorre, como no caso da Alternativa para a Alemanha (AfD) e suas expressivas votações em eleições regionais, a responsabilidade sempre é empurrada para os governantes, para os partidos.
Nunca para o próprio povo. Responderão pelos riscos ou pela morte da democracia partidos, lideranças; jamais as sociedades que permitiram o desaparecimento da mesma democracia. Como se o povo não guardasse a menor relação com a qualidade de sua própria vita civita.
Todos temos notícias do grande volume de obras produzidas sobre a culpa coletiva do povo alemão em relação ao nazismo e ao seu genocídio. A história da Alemanha internacionalizou-se de tal forma que as reações intelectuais, da imprensa e dos políticos ao ressurgimento do nazismo logo aparecem.
Por outro lado, sobre as sociedades italiana e japonesa, com seus genocídios desde 1931, na Abissínia e Manchúria, respectivamente, não pesa a menor cobrança. Tudo pertence a um passado distante que não se repetirá mais, enquanto pesquisas recentes mostram que 48% dos italianos aprovam o governo um “homem forte”. A responsabilidade aqui também não é da sociedade italiana, mas somente dos partidos, governos, e seus líderes.
Não fosse a participação das sociedades, seja pela ação ou omissão, dificilmente um governo sobreviveria. Não fosse por esta ou aquela visão de mundo que consegue conquistar a maior parte das populações, não haveria força política que se estabelecesse, ou que fosse vencedora em pleito eleitoral.
Impossível tirar a vista sobre o papel do povo, dos eleitores, da sociedade quando da derrota da democracia. A responsabilidade não haverá de recair somente sobre a institucionalidade. Especialmente quando se trata das sociedades da Europa, sempre com elevados níveis de escolaridade e razoável pluralismo da informação, a responsabilidade não deve ser direcionada somente para a chamada “sociedade política”.
No caso britânico, todos sabem dos planos dos Conservadores para diminuição dos recursos para educação. Todos sabem dos riscos para a democracia daquele continente com a vitória do isolacionismo não universalista inglês. Como podem reclamar? Como podem ser compreendidos como vítima da perversão da política? A perversão foi perpetrada pela própria escolha democrática. Sim, não tenhamos ilusões: o povo também elege seus algozes e a história está repleta destes exemplos.
Mesmo fora das sociedades europeias, não me parece suficiente a pieguice do complexo de culpa judaico-cristão ocidental, a enxergar somente no baixo nível de escolaridade a explicação que torna o povo em mera vítima. Quando a mesma população sabe que perderá em relação às políticas sociais, tem conhecimento do prejuízo que pode sofrer sua democracia, e ainda assim faz esta opção política, é hora de olhar para as mesmas sociedades e não somente para sua institucionalidade. É o momento de incluir na análise a responsabilidade coletiva e enxergar que governos, partidos e lideranças são limitados pela ação política de seus povos. Eis o que faz falta.
*Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do Município de Fortaleza (CE).
Edição: Rodrigo Chagas