Quem procura o amanhecer não teme a noite
Jeanine Áñez, a “presidenta” da Bolívia, entrou no Palácio Queimado com uma enorme Bíblia na mão. “A Bíblia voltou ao palácio”, disse ela ao tomar o poder. O Partido de Áñez – Movimento Social Democrata – conquistou apenas 4% dos votos nas eleições presidenciais de 2019, e seu nome sequer estava na linha de sucessão. O Movimento para o Socialismo (MAS) controlava a maioria no parlamento, e sua porta-voz – primeiro Adriana Salvatierra e depois Mónica Eva Copa – estavam à sua frente na fila. No entanto, como as autoridades do MAS permaneceram em suas casas, temendo pela própria vida, foi feita uma votação parlamentar que excluiu o MAS e escolheu Áñez para assumir o poder. Os militares a apoiaram. Logo em seguida, os Estados Unidos e o Brasil santificaram esse política fundamentalista cristã de direita como presidenta.
Os generais estavam ao lado de Áñez enquanto ela prestava juramento. Pairando nas proximidades estava Luis Fernando Camacho, cujo partido político obteve apenas 0,69% dos votos nas eleições presidenciais. No entanto, Camacho é o que dá as cartas. Ele é o líder do Comitê Cívico de Santa Cruz e da União da Juventude de Santa Cruz – ambas organizações tingidas de fascismo pró mercado. Camacho acompanhou Áñez até o palácio. Ele estava segurando um crucifixo. “Pachamama nunca mais retornará ao palácio. A Bolívia pertence a Cristo”, disse ele.
Sob a erupção vulcânica que colocou Áñez e Camacho no governo, está o crescimento, como uma lava, do movimento evangélico de direita. Nas eleições presidenciais de 2019, Áñez não era a porta-estandarte do evangelismo. Chi Hyun Chung (que ganhou quase 9% dos votos) e Victor Hugo Cárdenas (que ganhou 0,41% dos votos) tinham credenciais evangélicas mais fortes. Durante a preparação para a votação, Chi foi chamado de “Bolsonaro boliviano”. O sociólogo boliviano Julio Córdova Villazón descobriu que esses homens – Chi e Cárdenas – apagaram a separação entre Igreja e Estado e confiaram na vasta rede de igrejas evangélicas e programas de televisão para conduzir sua campanha. Após a eleição, Julio Córdova disse que foi Camacho, o homem que instalou Áñez na presidência, que legitimou seu autoritarismo por meio do “discurso religioso ao estilo de Bolsonaro”.
Jair Bolsonaro, o presidente do Brasil, está – como Camacho e os outros – enraizado nessas redes neopentecostais evangélicas transnacionais. Mas isso não é um problema apenas das versões fundamentalistas do cristianismo – como o neopentecostalismo -; existem evidências em todo o mundo desses tipos de movimentos religiosos autoritários que são movidos a ódio e elogiam as forças armadas e o capitalismo. Não é à toa que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi – que emerge de seu próprio movimento religioso-político autoritário – convidou Bolsonaro para ser o convidado principal na parada do Dia da República, na Índia, em 26 de janeiro de 2020. Pouco separa o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) [organização fascista ligada ao partido de Modi, BJP] , a Vishwa Hindu Parishad [organização fundamentalista hindu] dos movimentos do Tablighi Jamaat [organização indiana muçulmana com milhões de seguidores] e essas formações neopentecostais. Há uma quantidade enorme de coisas em comum entre todos eles.
Nossos pesquisadores em Buenos Aires (Argentina) e em São Paulo (Brasil) desenvolveram uma teoria preliminar desses movimentos neopentecostais na América do Sul. A equipe de Buenos Aires publicou um relatório (em espanhol) sobre a questão evangélica, enquanto a equipe de São Paulo produziu um documento ainda não publicado sobre a ascensão do neopentecostalismo no Brasil (Contribuições para entender ou crescimento pentecostal e os desafios para o campo popular, por André Cardoso e Fábio Miranda).
Uma das características comuns das descobertas na Argentina e no Brasil é que esses movimentos estão crescendo a um ritmo astronômico, tendo dobrado em vinte anos. Nos dois países, esses movimentos entraram na esfera eleitoral, onde começaram a definir um “voto evangélico”. Essa consolidação do evangelismo na política polariza seções da classe trabalhadora e camponesa. As análises de nossos dois escritórios são muito próximas uma da outra e apontam para pelo menos cinco características desses movimentos:
- Coração em um mundo sem coração. Nas últimas décadas, à medida que a desigualdade social aumentou, o poder de compra dos pobres urbanos e rurais diminuiu, enquanto o tempo e o dinheiro para atividades de lazer foram reduzidos. Com os cortes nos gastos sociais, as atividades comunitárias financiadas pelo Estado também diminuíram. Isso significa que, nos bairros mais pobres, opções de lazer e vida social, privadas ou financiadas pelo Estado, desapareceram. Perto das favelas do Brasil, se fazem presentes uma variedade de igrejas neopentecostais, alguns botecos e bares. Essas igrejas neopentecostais operam como um dos principais locais da vida social nessas comunidades da classe trabalhadora e como uma agência de emprego para seus membros. À medida que a Igreja se torna um centro para a vida social – incluindo aulas de música -, também atrai os jovens para suas fileiras. Poucos espaços além desses estão disponíveis para a classe trabalhadora.
- “Ideologia de gênero”. Na América do Sul, o movimento feminista, particularmente o movimento pelos direitos ao aborto, se fortaleceu. Como reação, essas correntes religiosas consolidaram uma resposta patriarcal. Argumentam que as elites estão tentando colonizar as famílias dos pobres, corroendo a autoridade paterna. Esses movimentos religiosos e seus aliados políticos sustentam rotineiramente atitudes patriarcais em relação às mulheres, procurando controlar todos os aspectos de suas vidas e mantê-las subjugadas e submissas.
O líder do RSS Mohan Bhagwat costuma dizer que as mulheres não devem trabalhar, que devem confiar em seus maridos. Ao colocar o Pai em um pedestal, esses movimentos levam seu ethos autoritário baseado no Líder Forte ao coração das famílias.
- Racismo. A afirmação de Camacho de que a Pachamama – um conceito espiritual indígena e andino – não tem espaço no palácio presidencial da Bolívia é apenas uma entre milhões de evidências que sugerem o profundo ódio que essa vertente do evangelismo tem por qualquer forma de vida que não siga seus preceitos. Tanto Áñez quanto Camacho fizeram declarações racistas sobre as comunidades indígenas da Bolívia, cuja fé consideravam “satânicas”. A visão da RSS sobre os muçulmanos, adivasis (indígenas), e a visão dos Tabligh sobre os apóstatas (murtadds), se espelham nessa atitude.
- Made in the USA. Nossas equipes em Buenos Aires e São Paulo descobriram que essas vertentes do evangelismo foram exportadas pelos Estados Unidos. A antropóloga Rita Segato sugere que houve um esforço conjunto para exportar essa forma de religiosidade para o Sul Global como um meio de desorientar e fragmentar a classe trabalhadora e camponesa, e minar os movimentos de libertação nacional. De fato, na década de 1960, os Estados Unidos, a Arábia Saudita e outros promoveram uma vertente estreita e sufocante de islamismo por meio da Liga Muçulmana Mundial para minar o crescimento dos movimentos socialistas da Indonésia ao norte da África. Pouco antes de ser executado, o líder egípcio da Irmandade Muçulmana, Sayyid Qutb, descreveu sua organização como parte de uma tendência que eu chamei de “Islã made in USA”.
As evidências levantadas por Segato chegaram até nós há uma década, quando o Dr. Kapya Kaoma e a Political Research Associates mostraram como os evangélicos conservadores dos EUA – assistidos pelo governo dos EUA – promoveram uma agenda de homofobia na África (Quênia, Nigéria e Uganda). Não é de admirar que essas correntes – incluindo a liderada por Áñez e Camacho – sejam acolhedoras com os militares e com o imperialismo. Mesmo que o impulso venha dos evangélicos dos EUA – ou do “islã made in USA” – ou da CIA, ele encontra seus aliados entre as elites dominantes e outros que conduzem uma agenda enraizada em formas religiosas mais antigas, mas armadas para chegar a seus objetivos.
É dessa onda profundamente violenta de neo-hinduísmo autoritário que o governo do BJP na Índia aprovou o Projeto de Lei da Cidadania (Emenda), que mina o direito dos muçulmanos de serem cidadãos indianos; e é com base nela que cerca a Caxemira e agora partes do nordeste do país e envia as forças policiais para atacar os estudantes da Universidade Muçulmana de Aligarh (Uttar Pradesh) e da Universidade Islâmica Jamia Millia (Nova Déli).
O Evangelho da Prosperidade. As igrejas neopentecostais e os gurus neo-hindus operam entre pessoas que geralmente são os mais pobres dos pobres, e ainda assim, é entre esses grupos sociais que promovem o “evangelho da prosperidade”. Não significa apenas que essas tendências façam uso de oportunidades do mundo moderno – a mídia e o mercado – para impulsionar seus objetivos; é que eles promovem os valores do neoliberalismo entre a classe trabalhadora – seja um empreendedor, não se torne um sindicalista.
Esses movimentos partem de tradições mais antigas, mas se atualizam para os tempos neoliberais. Não é como se oferecessem um antídoto espiritual necessário para populações desprovidas de vida social por culpa do ataque neoliberal; outras formas de conforto “espiritual” estão disponíveis, formas de convivência social seculares e progressistas. Mas como as instituições da cultura da classe trabalhadora são sumariamente destruídas em muitos países, essas formas – incluindo reuniões de bairro e sindicatos – vêm sendo superadas pelas assembleias religiosas bem financiadas. Uma sociologia genuína dessas neo-religiões não deve evitar olhar para os cantos escuros, onde as elites dominantes se sentam e dão seu apoio com cheques; na claridade, vemos a classe trabalhadora tropeçar e buscar uma alma em condições sem alma, mas a claridade é tamanha, que por vezes não conseguem enxergar esses cantos escuros.
Quem procura o amanhecer não teme a noite
Não tenha medo da mão que segura a adaga
O medo é o ethos dessa religiosidade neoliberal. O poeta paquistanês Ahmed Faraz viu esse medo e deu de ombros. Ele aconselha bravura.
Um dos corajosos é o Evo Morales, agora exilado na Argentina. Quando ele estava na Cidade do México, falou com Glenn Greenwald, do The Intercept, sobre o golpe na Bolívia e sobre as forças sociais em andamento na América do Sul. Por favor, assista:
Edição: Brasil de Fato