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A República e a "Contra República" de Curitiba: desencontro entre filosofia e justiça

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um juiz federal conseguiu instituir, no Paraná, uma parodia de Estado, com aparência de soberania, contando com a cumplicidade do MP
um juiz federal conseguiu instituir, no Paraná, uma parodia de Estado, com aparência de soberania, contando com a cumplicidade do MP - Divulgação/Facebook
Documentário de Carlos Pronzato traduziu os impactos da “República de Curitiba"

Em tese, Moro não ignora a lei, desse modo, beira a infecção ética e jurídica conduzir Lula para depor.
Boaventura de Souza Santos

*Por Marilia Lomanto Veloso 

Imaginar um hipotético diálogo entre Platão, Auguste e Louis Lumiére implicaria em visitar a filosofia clássica da Grécia Antiga e a cinematografia que animava as imagens do que se aponta como a primeira exibição pública de um filme de curta duração, pelos irmãos Lumière, encantando o privilegiado número de pouco mais de 30 presentes no Salão Grand Café, em Paris, em 1895.

A intimidade com o mundo fotográfico e a "síntese do movimento" atravessaram o século e avançaram para outras formas sofisticadas de fazer da sétima arte, além de um espetáculo audiovisual fascinante, um mecanismo de interlocução entre o mundo real e a fantasia que transcende a reprodução de imagens e sons nas telas.

O cinematógrafo que permitiu ao cinema se projetar no e para o mundo seduziu Carlos Pronzato, um mágico por trás das lentes, que com um olhar agudo, perspicaz e politicamente consolidado atravessa os fatos e desnuda as relações que se esgarçam no cotidiano que fisga com especial argúcia.

Enxergar as conflituosidades capturadas por Carlos Pronzato é um desafio de percepções que não são alcançadas por qualquer leitura apertada, encapsulada na mediocridade de sujeitos que só reconhecem as próprias sombras narcísicas.

A textura cênica estabelecida por Pronzato envolve o público mais atento ao cerne das grandes questões que tensionam momentos de elevado congestionamento de insatisfações sociais, cintilando tímidas e pueris estratégias discursivas que não abalam um milímetro das toxinas que infestam o atual discurso antipolítico do Brasil das infamantes e truculentas operações, desde a Arca de Noé, em 2002, até a Lava Jato.

A "Contra República" de Curitiba é mais uma dentre as diversas incursões de Carlos Pronzato na dinâmica das inquietações populares. Durante 50 minutos, sua câmara impõe um recuo a Platão para explorar a compreensão da justiça que exige definição para sua prática e com isso, se movimenta por múltiplos espaços, em diálogos que intercalam a linguagem direta e despida de escamoteamentos das falas populares com as metáforas acadêmicas de sujeitos que dominam o repertório dos paradigmas construídos pela chamada comunidade cientifica.

Para além desse garimpo filosófico, Carlos Pronzato instiga a investigação sobre os impactos das ações que aconteceram no “fatiado” Estado do Sul do país, o Paraná e de sua capital ostentada como “República de Curitiba”, um insulto à Constituição de 1988 que no Preâmbulo o artigo 1º já descreve que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”.

Contrariando o Pacto Constituinte, um juiz federal conseguiu instituir, no Paraná, uma parodia de Estado, com aparência de soberania, afinado com a operação Mãos Limpas da Itália, contando com a cumplicidade do Ministério Público, da polícia federal e de órgãos da imprensa, de reconhecida parcialidade político ideológica a interferir decisivamente nos debates políticos do país.

Organizados à semelhança do que descreve o artigo 1º da Lei 2.850//2013, mais de quatro pessoas, com divisão de tarefas, passaram a repercutir suas ações na opinião pública, enquanto uma delas obteve vantagem direta, compondo o governo que teve sua eleição garantida, mediante o inconfundível encontro de dois episódios emblemáticos: a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva e o processo eleitoral inundado de mensagens desvirtuadas e em visível desinformação sobre o candidato que substituiu o nome de Lula na disputa eleitoral de 2018.

A narrativa de Carlos Pronzato traduziu, de modo preciso, os impactos das ações da “República de Curitiba” e de sua artéria principal, a operação Lava Jato, nas decisões do governo federal. Didaticamente, o documentário sistematizou dois eixos por onde escorriam imagens, falas se entrecruzavam no tempo e no espaço escancarando o ativismo político-ideológico e partidário do sistema de justiça, a avidez e o delírio com que decidiam em desfavor das garantias constitucionais e o deleite ostensivamente chauvinista manifestado por protagonistas da “República”.

As vias de acesso ao documentário-denúncia de Carlos Pronzato acontecem pelo fluxo sociológico, antropológico na perspectiva de Curitiba ter se apresentado como um centro político de decisões que se expandiram por todo o país, provocando momentos de tensão e insurgência social.

O segundo eixo tematizado conduziu à análise crítica do judiciário brasileiro, notadamente por sua atuação na operação Lava Jato. Em todos esses temas, eram visíveis as contradições sociais e os encontros e desencontros entre as falas que expressavam essas desigualdades.

Em sentido oposto à explosão midiática de adesão às ações da Lava Jato, a narrativa de Carlos Pronzato escancara o repúdio de forças comunitárias, intelectuais e políticas ao processo de instrumentalização da Lava Jato  e do Poder Judiciário, nas práticas ignóbeis, obscenas e afrontosas ao Estado Democrático de Direito, efetivadas por um grupo de procuradores da República e Juízes Federais do Paraná, apontado como um espaço conservador, que melhor representa os interesses da burguesia e acolhe o segundo maior Partido Nazista fora da Alemanha.

Carlos Pronzato se define por um olhar e uma escuta leais em seus projetos de ativista social filmando e filtrando as lutas em defesa de direitos. A “República de Curitiba” não é um fato isolado da história, os discursos são construções de sujeitos manifestando na tela os arroubos e os dissabores que respiram no cotidiano.

A vileza jurídica espanta pela naturalidade da presença tanto quanto a resistência, ainda que acanhada, persiste na vontade coletiva de desativar a chusma legitimada pelo sistema de justiça, o mesmo que admitiu a chicanagem de se instituir uma “República” que bestializou a nobre função política de governar uma nação.

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, membro da ABJD.

Edição: Rodrigo Chagas