Há onze anos, precisamente em 29 de dezembro de 2008, a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica iniciava uma nova etapa de sua trajetória como política pública. A Lei 11.892, publicada naquele dia, criava um novo modelo de instituição de educação profissional e tecnológica (EPT), os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), e iniciava um processo de expansão e interiorização da oferta que culminou, onze anos depois, com mais de 600 campi espalhados pelo Brasil.
Esse processo foi fruto de amplo debate democrático, com realização, nos anos anteriores, de seminários, conferências organizadas exclusivamente para discutir a EPT e, principalmente, formulação de outras políticas públicas que viriam a dar o conteúdo político-pedagógico da Rede Federal. Esse conteúdo, orientador da rede até hoje, tem na gestão democrática um de seus pilares fundamentais.
Eis que, na véspera do Natal de 2019, quando todas as instituições da rede se encontravam em recesso e período de férias acadêmicas, o governo Bolsonaro apresenta, em forma de Medida Provisória – portanto, sem ouvir entidade alguma – um violento ataque à autonomia democrática e de gestão da Rede Federal.
A MP 914/2019 trata do processo de escolha de dirigentes de instituições federais de ensino, alterando diversos dispositivos legais, inclusive revogando artigos importantes da Lei 11.892 (arts. 11 a 14). Ocorre que o que está na essência do novo regramento é nitidamente uma forma de estabelecer, por parte do grupo que comanda o Executivo Federal, o controle autoritário das instituições federais de ensino. A medida, que discuto nos parágrafos seguintes, é uma tentativa de destruição do projeto original da Rede Federal, incluindo-a no programa ultraliberal e anticiência do governo Bolsonaro. Vale dizer que a MP também impõe mudanças às Universidades Federais, mas essas não são objeto de análise deste texto.
Três mudanças impostas pela medida devem ser analisadas de maneira articulada e conjunta, pois formam o eixo da MP. São elas: (a) a revogação da paridade entre segmentos (docentes, técnico-administrativos e discentes), estabelecendo o modelo 70%-15%-15% como regra na qual o voto dos docentes tem maior peso; (b) o fim da eleição direta para diretores gerais dos campi, que passarão a ser indicados pelo reitor; (c) e a instituição de uma lista tríplice de candidatos a reitor, com posterior submissão ao presidente da República, que escolherá, dentre os três, o dirigente máximo da instituição.
Os processos de escolha democrática nos IFs e Colégio Pedro II (CPII) contam, em geral, com participação intensa da comunidade. Isso se dá, de um lado, pelo fato de a paridade permitir que os diversos atores que constroem o dia a dia da instituição se sintam representados e apresentem suas demandas de maneira articulada ao longo do processo eleitoral. Há necessidade de aperfeiçoar certos dispositivos, como a fórmula de cálculo do resultado final e o peso dos segmentos docentes e/ou técnico-administrativos em campi em que são proporcionalmente muito menores que o segmento discente. Mas esses ajustes são de caráter técnico e dizem respeito a casos específicos, que em nada afetam o conteúdo democrático da paridade e seu significado para uma instituição como os IFs.
De outro lado, a participação mais intensa da comunidade vem da própria exigência – estabelecida pela Lei 11.892 e regrada, até então, pelo Decreto 6986/2009 – de escolher o dirigente de seu campus, em eleição que ocorre no mesmo período do processo de escolha do reitor. O conjunto de orientações politico-pedagógicas para a gestão dos campi da Rede Federal tratou de prever um modelo de instituição que deve ser, por meio de cada campus, parte dos arranjos produtivos, sociais e culturais locais, devendo desenhar seus projetos em sintonia com as comunidades e elevando a qualidade da pesquisa, do ensino, da extensão e da inovação em âmbito regional. Essa concepção está no DNA da rede e permite que os campi carreguem consigo projetos muito mais abrangentes que a noção tradicional de escola técnica, atuando e transformando a realidade local a partir de suas necessidades e fazendo cumprir o direito à educação a milhões de trabalhadores jovens e adultos. A escolha do diretor de campus via eleição direta e paritária dá a sustentação necessária para que essa concepção de EPT se desenvolva de maneira mais autônoma, valorizando o caráter multicampi dos 38 IFs existentes em todas as unidades federativas.
Todos esses processos são atualmente deflagrados e acompanhados pelo Conselho Superior de cada instituição, que remete ao Executivo Federal o relatório do processo e o nome do candidato eleito. O Decreto 6986/2009 exige, inclusive, constituição de Comissões Eleitorais central e de cada campus, compostas paritariamente por nove membros, também eleitos pela comunidade, para coordenar todo o pleito. A instituição de uma lista tríplice, prevista pela MP, impõe outro modelo de gestão, que, contraditoriamente, centraliza no presidente da República o resultado de um processo democrático. A própria medida, aliás, menciona, em seu artigo 3º, inciso V, um “colégio eleitoral” instituído para organizar o processo, mas não apresenta nenhum detalhamento da composição e escolha do instrumento.
Vale destacar que diversos casos recentes mostram que não há nenhuma disposição do governo Bolsonaro em indicar candidatos opostos a seu projeto político. No último processo do IFBA, por exemplo, a reitora eleita Luzia Mota não foi nomeada por Bolsonaro e teve de recorrer ao STF para obter seu direito de exercer o cargo. Com a MP 914, situações como essa podem ser reproduzidas diretamente em todos os campi, já que os diretores gerais passam a ser indicados pelo reitor.
Nesse ponto, é curioso observar que a medida dispõe, em seção específica, sobre a “nomeação de reitor pro tempore”. Mais curiosa ainda é uma das hipóteses apresentadas para essa nomeação: “impossibilidade de homologação do resultado da votação em razão de irregularidades verificadas no processo de consulta.” (Art. 7º, inciso II). Com a participação tímida que o Conselho Superior, órgão máximo das instituições, passa a assumir no pleito, como serão definidas e identificadas tais irregularidades? Fica nítido, mais uma vez, o papel centralizador da presidência da República.
Com a MP 914, alteram-se muito mais do que regras e procedimentos, mas o próprio projeto de EPT, fundado na soberania democrática e nacional, que institui a Rede Federal. O que nos resta concluir, ainda como uma primeira análise, é que essa medida se articula a um conjunto de ações do governo que representam retrocessos e ataques à própria autonomia das instituições federais, como o programa "Future-se", ameaças de cortes orçamentários e perseguições por parte do atual ministro da educação.
Estão em jogo conquistas obtidas ao longo de mais de uma década e que vinham construindo um projeto inclusivo e popular de Rede Federal de EPT. É necessário, como tarefa prioritária das próximas semanas e meses, organizar a luta para barrar a MP 914.
* Lucas Barbosa Pelissari é professor e pesquisador do IFPR Campus Paranaguá (PR) e doutor em Políticas Públicas e Formação Humana.
Edição: Daniel Giovanaz