O Brasil que elegeu Jair Bolsonaro não foi o primeiro e, provavelmente, não será o último país a dar uma guinada à extrema-direita no mundo. Em 2019, outras nações também viram ascender ao poder projetos ligados ao nacionalismo, à pauta de costumes atrelada a um moralismo religioso e a uma economia fortemente neoliberal.
Lugares como a Espanha e a Bolívia encararam cenários que passam por uma denúncia de golpe de Estado até a necessidade de alianças inéditas para contar projetos de retrocesso. Alguns lugares apenas reiteraram, de uma forma mais perigosa, o que já estava dado.
Listamos alguns países que, como o Brasil, terão um 2020 de desafios frente aos avanços populistas da direita:
Bolívia
A renúncia de Evo Morales após um “pedido” das forças militares da Bolívia fez ascender ao poder a ex-senadora e atual presidente interina Jeanine Áñez, que fez questão de entrar no parlamento boliviano com uma Bíblia nas mãos – mesmo quando cerca de 60% dos bolivianos são de origem indígena.
Áñez foi eleita como senadora em 2010, pelo partido Plano Progresso para a Bolívia, e disse que seu compromisso é “pacificar o país e convocar novas eleições”. No entanto, tão pronto se consolidou no poder da Bolívia, ela recebeu apoio dos mesmos militares que fizeram Evo Morales pedir asilo político no México. Atualmente, o ex-presidente encontra-se na Argentina.
A crise que culminou na queda de Morales se iniciou após a contestação do resultado das eleições deste ano no país, que elegeu Evo para um quarto mandato. A oposição, até então representada pelo candidato Carlos Mesa, pediu uma recontagem dos votos após denúncias de fraudes na apuração das urnas – o que foi acatado por Evo.
No entanto, a sequência de manifestações nas ruas e da repressão policial de ambos os lados, que deixou 34 mortos, foi a cartada final para que os militares pressionassem Morales a sair. Apesar de colocar-se como uma ferrenha opositora de Morales e de denunciar supostos crimes cometidos pelo ex-presidente, Jeanine Áñez ainda não anunciou uma data certeira para as novas eleições na Bolívia.
Espanha
A presença da Espanha na lista pode soar contraditória, já que o chefe do governo é o líder socialista Pedro Sánchez. No entanto, no parlamento espanhol de 2019, o partido de extrema-direita Vox conseguiu ascender ao posto de terceira força mais influente.
Instabilidade e longos períodos de bloqueio marcam a política espanhola desde 2015, quando o arco parlamentar foi fragmentado pelo surgimento de novas siglas e pelo declínio dos partidos tradicionais, o PSOE (esquerda) e o PP (conservadores). Em abril, o governo socialista não conseguiu articular forças dentro do Congresso, o que provocou a repetição das eleições em novembro e, de brinde, trouxe o aumento da bancada do Vox – eles obtiveram 24 deputados em abril e aumentaram para 52 em novembro, um grave erro estratégico que cobrou o seu preço.
O discurso populista do Vox exalta o passado glorioso da Espanha, o catolicismo, a família tradicional, a caça, as touradas, seduzindo um eleitorado masculino de 25 a 44 anos, decepcionado com a direita, originário do interior e dos meios rurais.
O porta-voz do partido, Rocio Monasterio, ultracatólico, antiaborto e contra o casamento entre homossexuais, denuncia “uma crise moral na Espanha”, onde, segundo dele, devido ao feminismo radical, que impede que “mais de 100 mil bebês nasçam a cada ano”.
Agora, Pedro Sánchez tece um acordo com outro partido de esquerda, o Podemos, para formar um governo de coalizão na Espanha. Para o plano se concretizar, porém, será necessário o apoio de outras siglas.
Cristina Monge, cientista política da Universidade de Zaragoza, avaliou que o governo espanhol recebeu o aumento da bancada conservadora com “surpresa”. “A pergunta é: por que foram capazes de fazer em duas horas o que não conseguiram em meses? A resposta é o auge de Vox e porque não havia outra alternativa”, destacou Monge.
Suécia
Ainda que seja governada por um social-democrata de centro-esquerda – o primeiro-ministro Stefan Löfven -, a Suécia vem assistindo ao crescimento da extrema-direita no país com direito a ser até mesmo uma escola de “boas-práticas” a outros líderes autoritários europeus. Em um país com os mais altos índices de praticamente todas as garantias de bem-estar social, a justificativa de uma “crise” pode não ser tão apelativa quanto no Brasil, mas a da imigração, sim.
Com 10 milhões de habitantes, a Suécia concedeu refúgio a cerca de 160 mil pessoas em 2015 – maior número de refugiados per capita na Europa, tema que polarizou os eleitores durante a campanha para o pleito no fim de 2018.
O partido dos Democratas Suecos, que tem raízes neonazistas, prega o nacionalismo e é contra a chegada de refugiados ou de pessoas que busquem uma melhora na qualidade de vida no “paraíso” escandinavo. Nas últimas eleições, realizadas no fim de 2018, eles obtiveram 17,6% dos votos. Como aconteceu na Espanha, a direita ascendeu ao terceiro lugar no Parlamento sueco.
Alemanha
A Alternativa para a Alemanha (AfD) é terceira maior força política no Parlamento alemão, com cerca de 90 deputados, e conseguiu avanços significativos nas eleições estaduais de 2019. Criado em 2013, o partido de extrema direita conseguiu seus melhores resultados no leste do país, onde já tinha entre 20 e 30% dos votos.
O partido começou como um partido contrário ao euro e aprofundou suas críticas à primeira-ministra Ângela Merkel em relação às políticas de imigração – entre 2015 e 2016, o país acolheu mais de 1 milhão de pedidos de asilo. O partido de Merkel, conservador e de direita, ainda conseguiu um fôlego para conter os avanços da AfD entre os estados alemães em 2019.
O novo copresidente do partido, Tino Chrupalla, pediu aos seus correligionários que adotassem até um discurso mais moderado como parte da estratégia para conquistar mais eleitores. No entanto, além da AfD, outros episódios isolados também colaboraram para um contexto de alerta em relação à ascensão da direita.
A eleição unânime do membro de um partido neonazista para prefeito de um vilarejo no estado de Hessen provocou protestos na Alemanha. Stefan Jagsch, do Partido Nacional-Democrático (NPD), recebeu o voto de todos os vereadores por ser aparentemente o único interessado no cargo.
Chile
Se o presidente chileno Sebastián Piñera já foi considerado como um símbolo da direita neoliberal que não flerta com extremos, o que aconteceu no Chile em decorrência dos protestos do segundo semestre de 2019, no entanto, mostra uma reação autoritária ao se lidar com o direito à manifestação. Os números e as histórias, principalmente, impressionam.
A principal associação médica do Chile anunciou que pelo menos 230 pessoas perderam a visão, parcial ou completamente do olho afetado, devido a tiros com espingarda de pressão disparadas por agentes de segurança do Estado durante protestos no país sul-americano.
Dessas 230, pelo menos 50 pessoas precisarão de olhos protéticos, segundo o oftalmologista Patricio Meza, vice-presidente do Colégio Médico do Chile. “Isso significa que o paciente não apenas perdeu a visão, mas também o olho”, afirmou.
Os protestos, que começaram em 18 de outubro em resposta ao aumento da tarifa do trem que leva à da capital, causaram 22 mortes confirmadas, em cinco das quais a intervenção de agentes do Estado é investigada. Além disso, o Instituto Nacional de Direitos Humanos entrou com 181 ações legais por homicídio, tortura e violência sexual supostamente cometidas por tropas.
“Também recebemos denúncias de estupro, agressão sexual, abuso sexual e ameaças de estupro. Essas mulheres, quando forçadas a se despir, são obrigadas a se agacharem, a fazerem flexão repetidamente, por um longo tempo. Existem até casos de mulheres que menstruam e são apalpadas; tocam nos seios, no corpo e até nos órgãos genitais, o que é um crime de agressão sexual”, disse Bárbara Sepúlveda, diretora da Abofem, uma associação de advogadas mulheres.
Para amenizar parte das demandas inseridas na onda de protestos, o Congresso do Chile aprovou o aumento gradual do piso das aposentadorias em até 50%. O presidente Sebastián Piñera anunciou, também, um pacote de 5,5 milhões de dólares para “reativar a economia” e criou um bônus único de cerca de 124 dólares para 1,3 milhão de famílias vulneráveis, o equivalente a um quarto do total de lares do país. Os protestos, no entanto, continuam. Mais do que eles, persistem, em 2020, as sequelas dos ataques contra a população.
Edição: Carta Capital