A América Latina é um continente em constante movimento. El desarrollo en carne viva, como diz a música de Calle 13. E o ano de 2019 não foi diferente, marcado por revoltas populares, eleições presidenciais, estado de exceção, pedidos de renúncia, exigências de reformas constitucionais, algumas tentativas frustradas e outras exitosas de golpe de Estado.
O aprofundamento da crise econômica mundial pode ser um dos caminhos para entender esse contexto. Dezembro finaliza um período marcado pelo menor crescimento econômico em 70 anos na nossa região, 0,1% e uma previsão que não supera 1,3% para 2020, segundo a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL).
O ano começou com a posse de Nicolás Maduro para o seu segundo mandato como presidente da Venezuela, depois de ser reeleito com 5.823 milhões de votos – 67% da votação.
Logo em seguida, no dia 23 de janeiro, o deputado do partido Voluntad Popular, Juan Guaidó, depois de se negar a disputar as eleições presidenciais de maio de 2018, decidiu se auto proclamar, durante um ato de rua, presidente encarregado da Venezuela. Esse seria o primeiro passo para um novo plano golpista aplicado no país.
Em paralelo, novas perdas para o campo progressista.
Nayib Bukele, em El Salvador, ex-militante da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) que, no entanto, foi eleito com uma estratégia de campanha muito similar a de Trump e Bolsonaro – focada nas redes sociais e na criação de fake news sobre os adversários.
Na Guatemala, Alejandro Giammattei, de extrema direita, venceu em segundo turno. No Panamá, Laurentino Cortizo, do Partido Republicano Democrático (PRD) ganhou com 2,3% de diferença a presidência com discurso de combate à corrupção e geração de empregos.
A cartilha neoliberal
Com o aumento da recessão, se intensificaram as disputas políticas.
Governos alinhados às políticas da Casa Branca e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) passaram a propor respostas econômicas com base na cartilha do Fundo Monetário Internacional: privatização de empresas e serviços, venda de recursos naturais, corte de gastos públicos do Estado por meio da redução das equipes de trabalho e da retirada de direitos trabalhistas, e aplicação reformas que dão mais benefícios ao empresariado.
Tudo em troca de um crédito da entidade internacional.
Essa foi a aposta de Maurício Macri, na Argentina (US$ 44 bilhões), Jovenel Moise, no Haiti (US$229 milhões), Lenin Moreno, no Equador (US$ 4,2 bilhões), Juan Orlando Hernández, em Honduras (US$ 311 milhões). No entanto, por onde o FMI passou deixou um rastro de endividamento e rebeliões sociais.
A aplicação de medidas liberais que encarecem e dificultam ainda mais a vida do povo trabalhador latino-americano, como o aumento de tarifa de combustível (Equador, Argentina, Haiti) ou do transporte público (Chile), foram o estopim que transformou o descontentamento generalizado em protestos.
Eleições e golpe
As decisões eleitorais se mantiveram no segundo semestre com mudanças substantivas em todos os países. Nas eleições regionais da Colômbia, o campo progressista-popular se impôs diante do uribismo, representado pelo Centro Democrático, partido governante de Iván Duque e Álvaro Uribe Vélez.
Um processo marcado por uma nova onda de perseguição a líderes sociais. Desde que o novo governo assumiu, em 2018, 229 pessoas foram assassinadas, apesar dos Acordos de Paz. O genocídio silencioso levou um setor da FARC-EP de volta à luta armada.
A cidadania não esteve indiferente e saiu às ruas para exigir o cumprimento das negociações e justiça social. Somados ao repúdio às medidas econômicas de Duque, que incluem uma reforma da previdência, os colombianos e colombianas estão há três semanas convocando greves gerais.
Na Argentina o peronismo voltou vencendo no primeiro turno: 12.473 milhões de argentinos apostaram em Alberto e Cristina Fernández para vencer a era macrista, que deixou o país com mais de 40% de pobreza, uma dívida de 44 bilhões de dólares com o FMI e um dos maiores índices inflacionários do continente.
::Conheça a equipe ministerial que tem a missão de tirar 40% dos argentinos da pobreza::
Já no Uruguai, depois de um empate técnico no segundo turno, a recontagem dos votos deu como ganhador Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional. Apoiado por outros quatro partidos de oposição, o advogado representará o fim de 15 anos de governos da Frente Ampla, um marco para um país que havia vivido décadas de bipartidarismo entre os brancos e os colorados (Partido Nacional x Partido Colorado).
No entanto, um dos fatos mais marcantes de 2019 certamente foi o golpe de Estado contra Evo Morales Ayma, antes de completar seu mandato (2014 – 2019) e logo depois de ter sido reeleito pela quarta vez com 2,9 milhões de votos e uma vantagem de 10,56% em relação ao segundo colocado, Carlos Mesa, da aliança Comunidad Ciudadana.
Baseados numa acusação de fraude eleitoral, defendida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) -- sem apresentar qualquer tipo de prova -- um consórcio opositor, liderado por Luís Fernando Camacho e apoiado pelas Forças Armadas do país, instalaram um governo interino.
Investida imperialista
A mudança de regime na Bolívia, alinhada ao recrudescimento do bloqueio econômico contra Cuba e Venezuela, refletem uma ação cada vez mais intervencionista do governo dos Estados Unidos por garantir governos submissos às suas demandas.
América Latina é fonte dos principais recursos cobiçados pelas grandes potências econômicas mundiais, em busca da superação da crise: as maiores reservas energéticas e minerais, fontes de água potável e terras agricultáveis, relativa industrialização e uma massa trabalhadora numerosa.
::As multinacionais, o valioso lítio da Bolívia e a urgência de um golpe::
Pela impossibilidade de dar respostas econômicas, a direção política caminha cada vez mais para o conservadorismo, com discursos de ódio, xenofobia, e repressão militar. Foi na base da violência que a oposição tentou se impor na Venezuela e que assumiu o poder na Bolívia.
Também com tanques na rua, chilenos, equatorianos, colombianos e brasileiros foram reprimidos quando decidiram exercer seu “livre” direito à manifestação. Um jogo de xadrez entre dois projetos políticos na disputa pelo futuro de cada nação.
Enquanto a economia global amarga um crescimento do PIB de 3%, segundo o Banco Mundial, os governos aumentam a repressão à medida que radicalizam suas políticas.
Também é uma forma de calar os protestos e sufocar a esperança que a liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ascensão dos Fernández na Argentina, ou a conclusão de um ano de Andrés Manuel López Obrador na presidência do México, possam ter gerado nas classes populares da região.
"Un pueblo sin piernas pero que camina" para um 2020 de novas eleições no Peru, Bolívia, República Dominicana, Brasil e Venezuela; de um plebiscito constitucional no Chile e de povo na rua.
Edição: Rodrigo Chagas