Ataque

“O Irã não vai deixar barato, a vingança é questão de honra", diz especialista

Igor Fuser, professor de Relações Internacionais da Federal do ABC, classificou o ataque de Trump como terrorista

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
O professor também aponta influência de Israel na medida adotada por Trump
O professor também aponta influência de Israel na medida adotada por Trump - Tauseef Mustafa/AFP

Novas explosões atingiram uma área importante de Bagdá, no Iraque, neste sábado (4), aumentando ainda mais a tensão entre Irã e Estados Unidos. Os ataques com mísseis atingiram a chamada Zona Verde, considerada uma das locais mais seguras da capital, onde ficam a embaixada dos EUA e a Base Aérea iraquiana de Balad, que abriga tropas estadunidenses.

Até o momento não foi contabilizada nenhuma morte, e a autoria do ataque ainda não foi reivindicada. 

O ocorrido acontece menos de 48 horas depois da investida de Donald Trump que levou à morte de um dos principais integrantes do governo iraniano, o general Qassem Soleimani, abrindo uma tensão sem precedentes entre Irã e Estados Unidos na última década. 

“O Irã não vai deixar isso barato, a vingança é uma questão de honra para a religião xiita. Foi um golpe muito duro. Esse general vai ter honras fúnebres de herói nacional. Mas eles serão pragmáticos, não se sabe como, quando e nem através de quem”, afirma Igor Fuser, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Fuser classificou a ação de Trump como um ato terrorista e explicou a linha histórica que levou à tensão entre Estados Unidos e Irã. Confira na íntegra:

Porque historicamente as relações entre Estados Unidos e Irã são tão sensíveis? Desde quando esse quadro se arrasta?

Antes de mais nada, o general assassinado era um dos principais comandantes militares, não era um terrorista, uma pessoa fora da lei, um Osama Bin Laden. Uma figura contra a qual nunca houve uma denúncia ou processo internacional, absolutamente nada. 

É importante ter claro que se trata de um crime de grandes proporções. O Irã, um país soberano que evidentemente não foi consultado, foi atropelado por essa ação militar estadunidense. Com esse ato terrorista, os Estados Unidos dão mais um passo para se tornarem exatamente aquilo que eles dizem combater: estados bandidos, se comportando no mundo como um Estado fora da lei, que não respeita nenhuma norma internacional, os direitos humanos e a soberania de nenhum outro país. 

Agora, voltando para a sua questão. Os EUA estão em pé de guerra contra o Irã desde a vitória Revolução Iraniana de 1979, que derrubou uma ditadura militar no país do Oriente Médio. O regime era comandado por Xá Mohammad Reza Pahlevi, apoiado pelos EUA e derrubado por uma das maiores revoluções populares do século 20.

Foi a Revolução Iraniana, que tinha na sua composição diferentes forças políticas -- correntes de esquerda, socialistas, liberais social democratas, mas que acabou sendo hegemonizadas pelo clero fundamentalista xiita --  que fundou a República Islâmica do Irã, que segue aí há 40 anos e nunca foi reconhecida pelos EUA.

Então esse quadro conflituoso começou nesse momento?

Na verdade, essa história se inicia antes mesmo da ditadura. Começa nos anos de 1950, quando o Irã tinha um governo democrático e decidiu nacionalizar o seu petróleo que, até então, estava nas mãos de uma empresa estatal britânica. Naquele momento, os EUA tomaram o partido da Inglaterra e patrocinaram um golpe de Estado que derrubou o regime democrático do Irã e instalou a ditadura comandada por Xá Mohammad Reza Pahlevi.

Foi uma ditadura assassina, que violava sistematicamente os direitos humanos, reprimindo qualquer força política contrária e que vigorou então até a revolução de 1979. Foi desde a revolução que os EUA propuseram como meta derrubar o regime do Irã. O governo estadunidense faz isso pelos mesmos motivos que atacam Cuba e Venezuela. Eles não aceitam que outro país contrarie os seus interesses e não estão dispostos a desistir do assédio, que é permanente contra o Irã.


"Uma figura contra a qual nunca houve uma denúncia ou processo internacional, absolutamente nada", afirma Fuser sobre o general morto (Foto: AFP)

E o embargo comercial?

Existem momentos mais fortes de tensão. Mas a pressão contra o Irã que agora se concretiza é sobretudo na forma de sanções econômicas. É um verdadeiro bloqueio contra o Irã visando basicamente que nenhum país do mundo compre o petróleo iraniano. Um embargo que está causando grande sofrimento à população e prejudicando muito a economia. 

Mas o país resiste firmemente, com um governo de forte apoio popular. Isso é algo que precisa ficar claro: o Irã não é uma ditadura no sentido que se entende uma ditadura. Há um governo eleito, um parlamento, imprensa, partidos políticos. Não é uma democracia nos moldes ocidentais, de fato. É uma república regida pelo fundamentalismo religioso. É uma democracia até o ponto em que toda na religião. 

Quem segue a religião islâmica na vertente xiita tem liberdade, a maioria da população, dá legitimidade para o governo, a gente gostando ou não. Mas isso são a escolha deles, não é algo que se resolva com assassinatos, assédio, bloqueio econômico, guerra e destruição. 

Além da legitimidade do governo, o Irã é uma potência regional. Isso influencia muito a posição do país na região, certo?

Sim, o que acontece também é que o Irã é uma potência regional, o maior país do Oriente Médio, com 80 milhões de habitantes, recursos naturais, indústria, é uma sociedade relativamente desenvolvida, tem força militar. Então é um país que naturalmente tende a projetar influência sobre o Oriente Médio. Os EUA, entretanto, não admitem nenhuma potência regional que possa agir em função de interesses próprios.

Se Donald Trump se sentiu à vontade para cometer esse crime, que é um dado novo, isso é muito grave. Amanhã eles podem resolver fazer isso com a Venezuela. Os EUA nunca tinham feito isso antes. Já houve outros atentados, assassinatos de figuras das Forças Armadas do Irã feitos através de terceiros, entre outros, mas diretamente lançar um míssil em um aeroporto de Bagdá para matar uma autoridade do Irã é um precedente novo. 

O que aconteceu é uma coisa de arrepiar os cabelos tanto que os aliados de Trump não manifestaram apoio. O presidente nem se deu ao trabalho de construir previamente dentro do país apoio político para uma ofensiva contra o Irã. 


Donald Trump abriu um presidente ao atacar diretamente (Foto: AFP)

E o que a situação interna dos Estados Unidos influencia nesse contexto?

O processo de impeachment contra o presidente muito provavelmente não vai prosperar, porque ele tem maioria no Senado. Mas ele está em campanha para reeleição debaixo de um processo de impeachment e, de repente, ele muda o foco. Coloca em cena o inimigo externo e demoniza o Irã na expectativa de que agora não se fala mais em problemas internos. 

O desemprego não é mais um problema tão grave, mas os empregos criados são de péssima qualidade, mal remunerados e intermitentes, e, mesmo assim, são considerados empregos, o que evidentemente é muito insatisfatório para as expectativas e o padrão de vida tradicional dos EUA. 

Acho que temos um pouco para entender essa ação: um processo de impeachment, empregos de baixa qualidade… Mas ao mesmo tempo não parece pouco para se cometer um crime?

Tem um elemento que é responsabilidade do Trump. Já houve outros momentos que ele teve a possibilidade de realizar ações intempestivas como essa, mas se conteve. Parece, entretanto, que dessa vez ele quis experimentar para ver o que acontece. E não falta gente estimulando, como Israel.

Mas o que Israel tem a ver com o ataque no Iraque?

A gente não pode dissociar esse conflito entre Irã e EUA e o papel belicoso que Israel joga nesse cenário. Se você olhar superficialmente, vê que Israel é o mais fiel aliado dos EUA no Oriente Médio. Evidentemente, então, que irá jogar para o lado estadunidense. Porém, na prática, o que acontece é que Israel muitas vezes dita as normas da conduta dos EUA na região. E isso se dá pela presença de uma comunidade judaica muito presente e influente na política dos EUA, e Trump, particularmente, é ligado ao lobby sionista nos EUA.

E qual é o interesse de Israel nas questões do Irã? 

Israel tem um interesse em manter um clima de confrontação no panorama mais amplo regional do Oriente Médio. Na medida em que Irã se torna o centro das atenções, os olhares se desviam de Israel ficando livre para consolidar a ocupação da Palestina. Enquanto se discute o Irã, o Estado israelense massacra o povo palestino, aumenta os assentamentos ilegais na Cisjordânia e prende pessoas.

Israel não está interessado em negociar, diálogo, conversações de paz, querem tudo para eles. Não admitem a existência de uma Palestina independente ao lado do Estado de Israel. Então existe esse fator também. Sem dúvida, a influência de Israel está presente nessa decisão irresponsável de Trump.


O general morto tinha alta popularidade entre os iranianos e estava cotado como possível próximo presidente (Foto: AFP)

E o que podemos falar da relação do Irã com a China e a Rússia?

Com o Irã assediado, a solução encontrada foi se aproximar da China e da Rússia. O país de Putin tem petróleo, mas a China está comprando cada vez mais, e ela não aceita bloqueio internacional. Está havendo uma aliança cada vez mais estreita entre esses país e consolidando um bloco contrário aos interesses norte-americanos.

Quem sabia disso melhor que ninguém era o Barack Obama. Quando ele assumiu ele disse que ia praticar uma política externa inteligente, o smart power: vamos focar nos nossos verdadeiros adversários, a China e a Rússia, e vamos diminuir as áreas de conflito periféricas. 

O raciocínio do Obama era o seguinte: o Irã é uma ameaça? Não. Uma ameaça à estabilidade no Oriente Médio? Não. O Irã é uma ideologia contrária? Não, o Irã é um país capitalista, eles apenas querem vender seus produtos, ter entrada no mercado internacional e proporcionar um bom nível de vida para a sua população. 

Obama quis normalizar as relações com o Irã. Vender mais petróleo significa um preço mais baixo, o que é bom para os EUA e para a economia capitalista mundial. A partir daí, um acordo foi patrocinado com o país do Oriente Médio, em 2015, com a participação de diversos países.

No acordo, o Irã não tinha mais condições de construir uma bomba atômica, já que o programa nuclear deles foi condicionado apenas para fins pacíficos. Apesar disso, Trump rasga o acordo com o Irã claramente sob influencia para atender o pedido do governo de Israel. E o resultado disso é essa aliança entre Israel, China e Rússia.

A gente tem uma relação conflituosa histórica que estava começando a vislumbrar uma solução e de repente Trump coloca tudo a perder. Diante desse cenário, qual pode ser a resposta do Irã?

Essa ação do Trump deixa em risco qualquer cidadão dos EUA, especialmente aqueles que moram fora. O Irã não vai deixar isso barato, a vingança é uma questão de honra para a religião xiita. Foi um golpe muito duro. Esse general vai ter honras fúnebres de herói nacional. Mas eles serão pragmáticos, não se sabe como, quando e nem através de quem. 

Eles não vão revidar com uma tática de guerra da mesma magnitude, porque uma escalada que levasse a uma guerra total,  evidentemente, significaria a destruição do Irã. O Irã não vai fazer isso. Os EUA não precisam também ir a uma guerra total, não vão invadir da mesma maneira que fizeram com o Iraque, que já era um Estado sem legitimidade, um tirano odiado pelo seu próprio povo.

O Irã tem condição de bloquear o Estreito de Ormuz por um certo tempo. É suficiente para jogar na lua o preço do petróleo, que já subiu e deve continuar subindo nesse clima de tensão. 

 

Edição: Julia Chequer