O Decreto nº 10.147, publicado em 03 de dezembro de 2019, inclui no Programa Nacional de Desestatização (PND) do Governo Federal os Parques Nacionais dos Lençóis Maranhenses, de Jericoacoara e de Foz do Iguaçu, unidades de conservação que deverão ser concedidas à iniciativa privada para a prestação dos serviços de visitação, com previsão de custeio de ações de apoio à conservação, proteção e gestão. De acordo com o artigo 2º do decreto, “o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES poderá ser contratado para elaborar os estudos necessários às concessões”.
As Unidades de Conservação (UCs) são áreas naturais protegidas pelo governo brasileiro para a preservação dos recursos ambientais a longo prazo. Com a promulgação da Lei nº 9.985 em 2000, foi instituído o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), compreendendo as três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e possibilitando uma visão integrada das áreas a serem preservadas, bem como mecanismos de participação da sociedade na gestão e fiscalização das UCs.
O SNUC divide as unidades de conservação em dois grupos: Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável, cujos objetivos variam em relação à forma de proteção e os usos permitidos. A categoria dos Parques Nacionais pertence ao grupo de Proteção Integral, onde, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, deve haver a “manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais”.
O objetivo primordial das UCs de proteção integral é justamente a preservação da natureza, sendo admitido apenas usos indiretos dos recursos naturais. Aos Parques Nacionais é permitido visitações públicas, realização de pesquisa científica, desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, recreação e turismo ecológico.
Ainda de acordo com o SNUC, toda UC deve possuir um plano de manejo: instrumento técnico que estabelece o zoneamento e as normas que devem regular o uso da área e o manejo dos recursos naturais existentes de acordo com os objetivos gerais, conciliando as ações necessárias para a gestão com a preservação ambiental. O plano de manejo abrange a área da UC, sua zona de amortecimento e seus corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover a integração entre a vida econômica e social das comunidades vizinhas.
De acordo com anúncio feito pelo ministro Ricardo Salles, o governo planeja a concessão de outras UCs, mas ainda não houve, até o momento, definição dos critérios que serão utilizados como, por exemplo, os prazos de concessão, quanto a concessionária pagará pela exploração da área, como se dará o manejo dos recursos naturais, dentre outras questões.
Um dos principais questionamentos refere-se à precariedade das condições de gestão e fiscalização dos parques e demais unidades de conservação e se as concessões à iniciativa privada vão assegurar o cumprimento dos demais objetivos dos planos de manejo, ou se apenas as UCs com grande número de visitações teriam condições de manter todo o sistema de gestão. Por exemplo, o Parque Nacional de Foz do Iguaçu, no Paraná, recebe cerca de 1,6 milhão de visitantes ao ano, enquanto outros parques menores, nos biomas da Mata Atlântica ou do Pantanal, recebem cerca de 1% desse número.
Além disso, comunidades locais cobram que essa discussão seja feita de acordo com os planos de manejo, que têm a previsão de um conselho consultivo de apoio à gestão e que é representado por atores locais, comunidades, pesquisadores e instituições parceiras.
Para debater algumas dessas questões, o Brasil de Fato conversou com a pesquisadora pós-doutora da Universidade Estadual de Michigan (EUA), Amanda Sousa Silvino. A pesquisadora é integrante do projeto “Repensando Barragens: Soluções inovadoras de energia hidrelétrica para alcançar produção sustentável de alimentos e energia e comunidades sustentáveis”. É doutora em Ambiente e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas, vinculada ao grupo de pesquisa do CNPq Mudanças Sociais, Conflitos, Biodiversidade e Mudanças Climáticas.
Bárbara Viana - Como bióloga e pesquisadora, você poderia falar sobre a importância das unidades de conservação brasileiras?
Amanda Silvino – As unidades de conservação são uma das principais políticas públicas para resguardar, proteger e garantir a salvaguarda da nossa biodiversidade, que já não existe em outro lugar fora da UC. No mundo, vivemos processos de degradação extrema, com perdas de habitats muito grandes para a implementação da ação antrópica, sejam projetos de desenvolvimento, estradas, mineração, abertura de fronteiras agrícolas. Então, garantir que existam áreas que sejam menos afetadas possível por essa dinâmica social que vivemos hoje garante muita coisa, entre elas, os serviços ecossistêmicos prestados por essa biodiversidade: regulação de pragas por insetos, polinização, equilíbrio da cadeia trófica, medicamentos, bioativos e outros. Muitas vezes se diz: “UCs não geram desenvolvimento econômico, e etc etc”, isso é uma grande falácia, pois temos milhões de tipos de possibilidade de usofruto em várias áreas. Poderia-se, sim, fomentar logísticas econômicas envolvendo nossa grande biodiversidade, o que pode ser feito inclusive fora das UCs, mas, como atualmente a principal politica pública é essa, isso faz com que essa figura seja extremamente relevante.
Bárara Viana - Por que, na sua opinião, o governo colocou esses parques nacionais específicos (Jericoacoara, Lençóis Maranhenses e Foz do Iguaçu) no Programa Nacional de Desestatização e não outros?
Amanda Silvino - Levando em consideração as logísticas econômicas envolvendo as UCs, o turismo é uma delas. Muitas vezes associa-se essa atividade às UCs, como o ecoturimo e turismo de aventura. Uma vez que isso gera lucro, surge o interesse da iniciativa privada. Só que nem todas as UCs têm esse potencial, então por que essas três UCs estão sendo concedidas primeiramente? Porque são UCs com grande potencial turístico. Uma vez que se faz uma logística e infraestrutura para receber o turista, abre a possibilidade das parcerias para que empresas privadas se beneficiem economicamente dessas atividades. Não colocam-se outras UCs porque outras não despertam o interesse da iniciativa privada. Por exemplo, a Floresta Nacional de Sobral, um parque pequeno de proteção integral, se não me engano, no meio da caatinga semiárida. Como uma empresa iria explorar, gerir, tentar levantar lucros em uma UC que, aparentemente, não tem essa vocação?
Por isso é delicado falar e pensar em iniciativas e concessões exclusivas para a iniciativa privada. Algumas UCs talvez não sejam atrativas, mas, por exemplo, as UCs da caatinga são pouquíssimo exploradas pela indústria farmacêutica. E o bioma caatinga é um dos que tem o maior potencial de moléculas bioativas do Brasil, exatamente porque as plantas têm essa característica de se adaptar ao ambiente seco, possuem essa enorme capacidade de produzir compostos secundários, moleculares, que são bioativos, muitas vezes ajudando na cura de doenças, ou na perfumaria, ou em outras funções farmacêuticas, e que poderiam estar sendo explorados e gerando uma economia, uma logística em cadeia de produção, com iniciativa da ciência, podendo-se desenvolver uma ciência aplicada, mas não se explora esse potencial. Só a iniciativa privada talvez não dê conta das UCs. O Estado hoje, nessa situação delicada de desmonte, de enfraquecimento das instituições, de desinvestimento, também não dá conta da gestão dessas UCs, e de fato deve-se procurar costurar iniciativas que possam garantir a salvaguarda da biodiversidade nessas áreas, seja por extensão, com a comunidade, com a iniciativa privada, com o Estado. Não importa qual estrutura seja, o importante é que nossa biodiversidade seja preservada e que isso seja responsabilidade de todos os setores sociais, independente do benefício que ela venha a trazer. Existem benefícios muito maiores, para além do lucro, como garantir a fertilidade dos solos, a regulação do clima, a filtração das águas, que não se resume a gerar lucro para grupos privados.
Bárbara Viana - Você acredita que podem ser financeiramente vantajosas as concessões desses parques para a iniciativa privada?
Amanda Silvino – Quando se pergunta se vai ser vantajoso é interessante perguntar: vantajoso para quem? É claro que, sendo um parque lucrativo e uma empresa privada se ocupa de gerir esse recurso e esse potencial econômico que o parque tem, vai ser bom para a empresa. Dentro de uma política de estado que tem como premissa o Estado mínimo, se exonerar dessa responsabilidade é bom para o Estado. Mas, ao mesmo tempo, coloca nas mãos de um grupo com pouca atuação do Estado, muitas vezes, frente às decisões desse grupo coisas que são do interesse comum, coletivo, local, regional e nacional. Então uma empresa privada quando vem gerir uma Unidade de Conservação pode muitas vezes gerar conflitos com a comunidade local, com os usos tradicionais, conflitos até de acesso. Por exemplo, Jericoacoara e o acesso ao parque como travessia para se chegar aos locais de pesca pelas comunidades pesqueiras. Uma vez que existe uma gestão privada, esses acessos podem ser interrompidos.
Pode gerar benefícios para certos grupos e impactos negativos para outros. Com certeza ocorrerão conflitos de interesse. Como esses conflitos serão resolvidos, como os acordos serão feitos, talvez se gere benefícios para grupos que inicialmente sejam negativamente impactados. Por exemplo, se houver uma partilha desses lucros que garanta uma estrutura escolar, melhores postos de saúde, ao mesmo tempo isenta o Estado. Mas até que ponto tirar o Estado dessas funções não coloca esses grupos sociais... Não gostaria de usar a palavra “reféns”, mas, sim, reféns dessa iniciativa privada? São relações extremamente complexas que se reconfiguram ao longo do tempo que ora trazem impactos positivos, ora trazem impactos negativos. No caso em que uma crise econômica faça que os rendimentos desses parques não sejam mais tão lucrativos, o que acontece? São situações que constantemente precisamos nos questionar e estar envolvidos, sabendo que, antes de tudo, o que está lá é nosso patrimônio ecológico, um bem comum, e que, seja pelo Estado ou pela iniciativa privada, seja tido como um bem comum, isso para mim é claro.
Bárbara Viana – Como essas concessões poderão influenciar na vida das comunidades nativas?
Amanda Silvino – Quando a gente pensa em comunidades nativas e tradicionais, isso traz uma reflexão sobre o próprio processo democrático. É importante que haja a participação popular, que haja participação dos diferentes grupos sociais que moram nesses locais, sejam rendeiras, pescadores, quilombolas, indígenas, todos esses grupos envolvidos, como associação de bugueiros e pequenas empresas turísticas, e que possa ser fomentado um diálogo amplo desses grupos com a empresa que está chegando para gerir essa unidade. Eu não consigo ver uma gestão de sucesso sem o diálogo com todas as partes. Mas isso é uma concepção muito nossa. Por exemplo, no Chile e na Patagônia chilena não é assim. O apelo turistico, de turismo de aventura, da região é muito grande e o Chile é um Estado neoliberal dos mais tradicionais da América do Sul e há muito tempo eles trabalham com a preservação da biodiversidade deles através de parques privados. Então, são grandes milionários, grandes corporações que compram terras no Chile e preservam essas áreas, sem interação direta com a comunidade, que é impedida de entrar nos parques, que são áreas privadas. É uma relação completamente diferente que eu espero que não aconteça com as unidades que estão sendo concedidas para a iniciativa privada. Em princípio, devemos ter o processo democrático e a participação de todos os grupos possíveis nas tomadas de decisões, com a partilha dos benefícios gerados por esses empreeendimentos. Isso para mim é uma garantia que as comunidades serão beneficiadas com a chegada de uma empresa que obteve a concessão do parque
Bárbara Viana - Você conhece outros casos de concessão de unidades de conservação para a iniciativa privada? Se sim, quais aspectos você observou?
Amanda Silvino - O Brasil entrou nessa questão de parcerias público-privadas, as PPPs, que estão já consolidadas em algumas áreas, por exemplo nos presídios eu sei que está bem mais avançada a legislação de concessão à gestão privada de algo que seria, a priori, público. Também os serviços de saúde, hospitais. Essa discussão para UCs é recente. Não conheço ainda nenhum Parque ou UC grande e relevante que tenha sido concedida para a iniciativa privada. Mas, no Brasil existem as RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural), que são UCs privadas. Uma que é um exemplo super bem-sucedido, financiada por um fundo privado norteamericano e que atua na região semiárida é a Serra das Almas. Ela é gerida pela Associação Caatinga e recebe um fundo permanente que paga o guarda florestal da associação e outros funcionários da reserva. É uma UC de referência para a caatinga, que tem atuação na comunidade, que faz parceria com o poder público, que produz material didático sobre a caatinga, que faz ciência dentro da UC, que tem parceria com universidades, que tem turismo, que envolve a comunidade com o turismo comunitário, que faz formação de guias de trilha que são da comunidade. Então, a Reserva Serra das Almas é um modelo super interessante de uma UC privada, uma RPPN, em uma região que, inicialmente, não teria uma demanda turística, como tem na região dos cânions do São Francisco, onde morreu um cangaceiro famoso e que é uma UC com potencial histórico e turístico, na beira do São Francisco e já é explorada por uma empresa. A Reserva Serra das Almas não tem essas características, mas tem um trabalho e um investimento tão grande e uma atuação tão ativa que se tornou eficaz, viável e de referência. É um modelo de gestão e preservação da biodiversidade muito importante, principalmente na nossa região do Ceará.
Pela experiência dessa reserva em gestão de UCs, ela poderia inclusive ajudar na elaboração do marco legal. Como se dariam essas relações normativas, de legislação, sobre a chegada da iniciativa privada e sobre essas concessões. Porque esse debate também precisa existir e precisa ser publicizado e ser refletido pela comunidade acadêmica, pelas ONGs, pelas comunidades do entorno. Como tenho falado, eu acredito que o princípio democrático e da participação plural deve permear esse processo, caso comecem haver concessões das UCs.
Bárbara Viana - Quanto à questão da fiscalização das gestões e dos usos desses parques, você acredita que será mais ou menos efetiva no contexto de gestões privadas?
Amanda Silvino – Gestão e fiscalização, coisas bastante complexas. Quanto mais a comunidade da região se sente apropriada dessa área, mais se garante que a fiscalização vai ser coletiva. Mas quanto mais conflitos e quanto mais guardas armados você coloca para proteger uma área, é menos democrático e menos diálogo, talvez mais conflituoso vai ser a fiscalização e a gestão da área. Então depende muito da perspectiva e dos pressupostos que se têm para pensar essas UCs. Estamos em um momento muito delicado em relação às questões ambientais no Brasil. Existe um desmonte declarado das instituições ambientais de fiscalização. O IBAMA lançou recentemente uma nota dizendo que talvez haja um “apagão do IBAMA”, porque o órgão já não tem mais fiscais suficientes, não está previsto concurso, o orçamento diminuiu em mais de 30%. O Instituto Chico Medes (ICMBio) também está perdendo a legitimidade, o próprio governo está gerando discursos que fazem com que essas instituições que têm esse papel de fiscalizar e gerir estejam cada vez mais fracas e esse enfraquecimento abre para a justificativa que é preciso privatizar porque o público não dá conta. Isso é uma falácia, na verdade o público não está dando conta porque não há investimento e está havendo desmonte aberto, legitimado por um discurso governamental. Como a iniciativa privada vai entrar nisso? Será de uma forma mais aberta, democrática, conversando com todas as instituições? Será de uma forma mais “é minha propriedade, logo existe um muro aqui”? A propriedade não será privada, será do Estado, mas a forma de se agir sobre o espaço será dentro dessa lógica privada de que “desse ponto ninguém passa, porque quem é o responsável sou eu e eu decido o que fazer sem diálogo”. Então, tudo depende muito dessa conjuntura de como e quem vai estar envolvido no diálogo, na negociação. Quanto mais atores estejam envolvidos mais a gente garante que o processo seja transparente e claro, podendo trazer benefícios a todos. Quanto menos atores sociais participando, mais talvez esses benefícios se concentrem no grupo que vai gerir a área. Tudo vai depender de como as negociações serão feitas.
Edição: Monyse Ravena