O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) concedeu entrevista à TVT na noite desta quarta-feira (15) e analisou sua trajetória recente, após a libertação dos 580 dias de prisão, no dia 8 de novembro.
Ele tratou do desafio de enfrentar e superar Jair Bolsonaro (sem partido), avaliou a ascensão de poder das igrejas evangélicas, tratou do cenário eleitoral paras as eleições municipais deste ano e avaliou os erros e acertos do Partido dos Trabalhadores no período recente.
Sobre o caso específico da capital paulista, Lula falou sobre as possíveis candidaturas do PT e questionou a postura que, segundo sua análise, fez com que o partido perdesse espaço para a direita. "Nós perdemos 2016 no maior processo de condenação de um partido político. E perdemos porque não tivemos coragem de ir para a rua nos defender. Não quis porque as pessoas estavam receosas de ir para as ruas. Faltou enfrentar a situação. Quando você tem uma doença grave, uma agressão grave, não se esconde. Você enfrenta."
Veja a entrevista completa:
Leia a entrevista na íntegra:
Juca Kfouri – Eu começo esta conversa, presidente Lula, fazendo a seguinte pergunta: eu jurava que o senhor sairia da prisão injusta em Curitiba no papel que sempre lhe coube, de conciliar o país. Que o senhor sairia de Curitiba com Nelson Mandela na cabeça. E vejo que o senhor saiu com Vila Euclides na cabeça. O senhor está mais para Vila Euclides ou Mandela?
Nunca larguei a Vila Euclides. Primeiramente, falo da alegria imensa que é estar aqui. Ainda não totalmente livre, estou solto. Na semana passada, a Polícia Federal abriu mais inquérito sobre mim por conta de um discurso que eu dizia que este governo é um governo de milicianos.
É engraçado que a pressa que eles têm de fazer um inquérito contra mim não é a mesma pressa que eles têm para fazer um inquérito sobre o Queiroz. A pressa com que Justiça Federal e MP Vou tentar suportar tudo isso, esperando para ver no que vai dar.
Juca – Mas mais Mandela ou Vila Euclides?
Essa é uma coisa que muita gente me fala, me cobra, muita gente pergunta se estou mais radical. Nunca fui radical. Às vezes sou intransigente nas coisas que acredito e alguém, para me convencer ao contrário, precisa ser intransigente. Veja, não tem hoje no Brasil ninguém – exceto os partidos de esquerda, uma faixa do PDT, o Psol, PCdoB – , você não tem mais ninguém que não seja os que compuseram o esquema para tirar a Dilma.
Eu gostaria de estar conversando com muita gente. Tenho uma preocupação com o Brasil, pretensões para o povo brasileiro. Se eu tivesse com quem conversar, certamente não teria 2 milhões de pessoas na fila do INSS. No meu tempo de presidente, o Marinho era ministro do Trabalho, e o trabalhador não levava documento. Ele era comunicado: “Sr. Juca, o sr. já tem direito de se aposentar, seu salário é tanto, quando quiser venha na Previdência”.
Vi esses dias uma foto estampada na capa do jornal O Estado de S. Paulo lembrando tempo em que trabalhador se aposenta em cinco minutos. E agora vi no jornal que vão requisitar 7 mil soldados reformados (força tarefa para resolver a fila do INSS). Ora, tem tanta gente desempregada, por que pegar os aposentados pra fazer?
Se o Bolsonaro não sabe como fazer, pede pra chamar o (Carlos) Gabas, pra chamar o Marinho (ex-ministros da Previdência), pede pro ministro conversar com o (José) Pimentel que também foi ministro da Previdência, hoje é senador.
Conversa com alguém. Agora, falar que eu não quero conversar? Deveriam falar “pelo amor de Deus, ajuda a gente”. A gente ajudaria. Quando eu era diretor do sindicato, em 1972, eu cuidava de aposentadoria, dávamos a entrada na aposentadoria e esperávamos três anos, quatro anos e não saía.
Agora, respondendo diretamente, quero dizer que gostaria de ser um Mandela e gostaria de dizer que gostaria que o Brasil estivesse, neste momento, vivendo as mesmas condições que vivia o povo da África do Sul: querendo paz, querendo harmonia. Mas não temos um governo que quer isso.
Juca – Tenho repetido no Entre Vistas, na TVT, uma frase de um poeta pernambucano, seu conterrâneo, Marcelo Mário Mello, que diz ser a favor de uma frente ampla, tão ampla, até doer. Eu lhe pergunto se é possível pensar em uma frente ampla no Brasil até doer. Que caiba, vamos dizer assim, FHC?
É preciso saber para que você quer a frente ampla. Por exemplo, quando foi para conquistar as diretas neste país, fizemos uma frente ampla. Agora, na hora que você vai decidir quem é o candidato e o programa que você vai construir, tem a separação e cada um vai para seu canto.
Você percebe que tem, numa escada de 10 degraus, tem um que você fica com todo mundo, depois outro com menos gente e, às vezes, você vai ter que andar sozinho. Hoje, acho que é possível criar uma frente ampla para conquistar de volta a soberania nacional.
Agora, é preciso saber o seguinte: quando você vê o espectro político, percebe que, dentro da Câmara e do Senado, eles estão conseguindo aprovar quase tudo que o Guedes manda. Então, você tem essa seguinte coisa: de um lado, Bolsonaro falando e às vezes até blasfemando coisa que ele mesmo não acredita; você tem o Guedes governando, ele que diz o que tem que fazer; e você tem o Rodrigo Maia fazendo o papel de como se fosse um primeiro ministro, transformando as coisas do Guedes em coisas aprovadas.
Então, quando chega na elaboração de projetos específicos de direitos do povo brasileiro, não tem como criar uma frente ampla. Você pode criar uma frente de centro-direita, uma de centro-esquerda, uma de esquerda. Coisa que já temos. Se você imaginar minha vida, pegue a eleição de 1989, começamos com a Frente Brasil Popular. Eram três partidos políticos. Depois, fomos para a Frente Ampla nas eleições de 2006. Em 2002 já tinha o José Alencar como vice que era do PR. Você tinha um objetivo, ganhar para quê?
Há vários momentos e várias possibilidades de criar frentes de acordo com o assunto que está em pauta.
Talita Galli – Hoje já se fala até em candidatura de Luciano Huck fazendo parte de uma centro-esquerda. Então, esse eixo está deslocado. A partir disso, quando se fala em frente ampla, é preciso radicalizar à esquerda, ou precisa manter o espírito conciliador. Por exemplo, você disse em uma entrevista que não teria como formar frente com pessoas que apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff no passado. E agora, você agora falaria com essas pessoas?
Talita, o Luciano Huck não representa a centro-esquerda, ele representa a Rede Globo de Televisão. Do lado da esquerda você tem o Ciro Gomes em um partido historicamente de esquerda, ou de centro-esquerda. Você tem o Flávio Dino, que é possível candidato, o Haddad que foi candidato, o Psol teve candidato. Então, quem é a centro-esquerda no Brasil? Ninguém.
O Luciano Huck está sendo discutido pelo dono da Ambev (João Paulo Lemann, homem mais rico do Brasil), que é o novo formador de quadros políticos no país, possivelmente ele queria conquistar pobres e o Nordeste. Mas não tem ninguém. Ainda é cedo para dizer qual o espectro político.
José Trajano – Não é cedo, presidente. Estamos falando de eleição presidencial já, mas temos a eleição municipal este ano, que tem características novas, uma nova legislação. Dá uma certa angústia e ansiedade nas pessoas, para que a esquerda se una. A expectativa maior é com quem o PT vai ficar. Então, falam que o PT pode apoiar o Freixo no Rio, a Manuela em Porto Alegre. Mas essa legislação eleitoral que se aplica agora complica. Quando tiver eleição municipal, vai estar na metade do governo Bolsonaro.
Por que às vezes complicamos? Ou a gente complica na pergunta, ou a gente complica na resposta. Vamos pegar o PT agora. Como o PT governa o Piauí, a Bahia, o Ceará. Lá tem de todo mundo. As pessoas que derrotaram Dilma, o Ciro Nogueira, que foi presidente do PP, fez parte da chapa do Wellington (Dias, atual governado, no quarto mandato). Quando a pessoa diz que o PT não gosta de fazer aliança, a gente mostra o contrário. O PT quer aliança ampla até demais. Acontece que temos que levar em conta sempre a realidade local. Você não pode trazer uma realidade local para resolver o nível nacional. O PT já fez isso.
Juca – Mas sempre com o PT na cabeça de chapa?
Não, veja, quando você tem o melhor candidato, é correto que você tenha. Você não vai nunca tirar o Juca Kfouri que começa na pesquisa com 20% e o Lula com 2%. Você não vai exigir que não saia o Juca, você vai conversar com o Juca.
O PT não tem nenhum problema de apoiar companheiros como o Trajano falou. O Freixo, a Manuela. Já apoiaram a gente tantas vezes. A pergunta que eu faço é o seguinte: o PT não quer disputar as eleições por quê? Por que o PT não tem gente, ou por que o PT decidiu não querer lá? O PT (em Porto Alegre) tem dois ex-governadores, dois ex-prefeitos. Poderia concorrer. Mas por quê? Então, o PT fez uma opção.
Aqui em São Paulo, é sabido que Haddad não quer ser candidato. Quando a pessoa não quer, é bom não forçar porque ganhar querendo é difícil, sem querer… O PT vai ter que escolher outros companheiros. Por que brigamos para aprovar eleições em dois turnos? Qual foi a discussão da época?
Brigamos bastante porque a gente garantiria que todo e qualquer partido, independente do espectro ideológico, tivesse uma candidatura, fizesse seu discurso, fosse para a televisão, defendesse seus programas. Se o povo não elegesse eles, eles apoiariam outro. Para isso serve o segundo turno.
Aí se constituiu no Brasil a ideia de que não deveria ter dois turnos, vai todo mundo junto. Não. Não sei se o PT vai ter candidato no Rio de Janeiro, em São Paulo, certamente terá. Mas esse candidato do PT, se não for para o segundo turno, vai ter que apoiar outra pessoa.
Aqui em São Paulo, dou um exemplo: Mario Covas. Covas, em 94 e 98. Em 94, o candidato do PT era José Dirceu (ficou em 4º no primeiro turno). E havia no PT uma corrente que queria fazer o voto em branco ou nulo. Eu, Celso Daniel e Suplicy fomos a Santo André fazer uma passeata em defesa do Mario Covas antes do PT decidir votar branco ou nulo. E o PT apoiou Covas em 94 e 98.
Juca – Em última análise, o senhor admite a hipótese, em 2022, de o PT apoiar Flávio Dino à Presidência da República?
Por que não? Admito. O PCdoB já me apoiou quatro vezes. A dificuldade que não tenho mais de responder uma pergunta dessas é que se você tiver um jornalista em um jornal que vá assistir ao seu programa, vai dizer: “Lula vai apoiar Flávio Dino”. Eu gosto do Dino, acho ele uma figura competente, um companheiro da maior lealdade comigo em todo o meu processo, tenho por ele um apreço extraordinário. Agora veja, o PT é um partido muito grande comparado ao PCdoB.
Juca – Agora, é possível pensar na vitória de um candidato do Partido Comunista do Brasil no Brasil de hoje?
É difícil, e o Flávio Dino sabe disso. Vou dizer para você que é muito difícil imaginar eleger alguém de esquerda sem ser do PT. O PT não é qualquer coisa. Apesar de as pessoas tratarem o PT com certo descaso, vamos pensar. O PT nasceu em 1980, em 1989 fui candidato à presidência contra Ulysses Guimarães, Brizola, Mario Covas, Maluf, Collor, Afif Domingos e o Enéas. E foi eu que fui para o segundo turno. Por que? Por causa do PT. O PT já estava enraizado no Brasil afora. Seja em comunidades, movimentos sindicais, movimento social.
O PT foi o segundo em 1989, o segundo em 1994, o segundo em 1998, primeiro em 2002, primeiro em 2006, primeiro em 2010, primeiro em 2014 e segundo agora em 2018, com Haddad. Você percebe que não estamos falando de uma coisa qualquer. Estamos falando do maior partido de esquerda da América Latina.
Trajano – Mas a crítica que se faz ao PT – e adoram fazer crítica ao PT, Bolsonaro a cada frase fala do PT – é a falta de renovação. Em São Paulo, você acredita que com esses pré-candidatos o PT chega em algum lugar?
Pode aparecer alguma novidade ainda. Quando fui candidato em 1982 para governador do estado, jamais tinha imaginado ser candidato a alguma coisa dois anos antes. Eu tinha tanta gente na rua nos comícios, dava autógrafo, que cheguei no comício final, no Pacaembu, convencido de que eu ganharia as eleições. O Estadão publicou uma pesquisa dizendo que Lula tinha 10%. Eu achei que o Estadão era mentiroso. Achei que eu ia ganhar, muita gente achou. Eu tive 10%. Fiquei frustrado.
Vamos ver os pré-candidatos que estão aí. Zarattini é deputado há bastante tempo, Bonduki, Padilha, Jilmar Tatto foi deputado, secretário da Marta, do Haddad. Essa gente tem currículo para ser candidato. Mas é preciso saber se vai conseguir transformar esse currículo em apelo popular.
Juca – Você gosta mais da Marta?
Não é que eu gosto mais da Marta, tenho um profundo respeito pelo histórico da Marta no PT. Não misturo minhas divergências ideológicas com minhas relações pessoais. Já disse que gosto da Marta, respeito a Marta, quando nem era petista ainda cedeu muitas vezes a casa dela para reuniões. O fato de ela ter saído do PT, ela queria que eu fosse candidato à presidência e eu não quis ser. Eu dizia que ela estava errada, ela dizia que eu. Ela saiu ofendendo o PT. Disse, outro dia, que todo mundo tem o direito a se recuperar.
Trajano – Mas a militância que eu conheço não aceita a Marta de jeito nenhum… Depois de entregar flores para a Janaína…
Eu sei como se comporta a militância. Em 1985, com o PT apenas com cinco anos de idade, expulsamos Airton Soares, líder e baita deputado. Expulsamos Bete Mendes, que era uma baita deputada (ambos por apoiar a eleição indireta de Tancredo Neves). Expulsaram oito. E o pessoal disse que o PT ia acabar e o PT ficou mais forte. Então, não tenho nenhum problema em apoiar candidatos de outros partidos políticos. Quem elegeu o prefeito de Aracaju foi Marcelo Deda (ex-governador do PT). Poderia ter saído um candidato do PT, mas apoiou um do PCdoB. Não tem uma coisa definitiva.
Talita – Qual o critério para escolha de um candidato? Aqui em São Paulo, uma pesquisa divulgada hoje diz que Guilherme Boulos estaria à frente de Jilmar Tatto, possível candidato. Você disse que é difícil eleger alguém da esquerda no Brasil. A ideia é fazer o debate ou colocar alguém para vencer?
Imagino o seguinte, não se iluda com pesquisas. Boulos tem histórico de uma campanha presidencial. Um exército de guerra, que é um partido político, coloca os generais e soldados que você tem, os aparatos espalhados pelo país. E o PT é um grande partido político. Se você pegar o mapa eleitoral de São Paulo, você tem um cinturão vermelho em volta de São Paulo, que é muito mais fácil de recuperar com o discurso correto.
Recupera indo para a rua. O PT tem que reafirmar porque existe o PT, para que foi criado, o que fez nessa cidade. Você tem dúvida de que Marta, Erundina e Haddad foram os melhores prefeitos de São Paulo? É só pegar os dados, obras, escolas, benfeitorias. Você vai perceber.
Talita – Mas nos últimos anos tivemos a construção de um antipetismo muito forte.
Não existe essa história de antipetismo. Agora tem o antiflamenguismo. Já teve o anticorintianismo. Como o PT é muito forte, é normal com quem é mais forte. O PT é muito grande, por isso as pessoas falam contra o PT.
Trajano – Como recuperar o prestígio na rua?
Fazendo campanha. O PT tem soldado, tem militante para ir para a rua em cada bairro mostrar para que o PT existe. Primeiro, o PT precisa começar uma campanha defendendo o legado, o que o PT já fez na cidade. Depois o PT tem que mostrar o que foi feito nas cidades durante o governo federal do PT. Tenho certeza que eu trouxe mais benefícios para o estado de São Paulo com Serra governando do que FHC trouxe com Covas. Trouxe mais dinheiro para a cidade de São Paulo com Kassab governando do que eles trouxeram para os candidatos deles.
Juca – Quando o visitei em Curitiba o senhor disse que estava vendo muita televisão e que estava convencido de que era necessário fazer como aqueles programas de TV que você via, com pastores evangélicos repetindo, repetindo, martelando as mesmas coisas. Hoje o senhor tem essa preocupação em relação a conversar com evangélicos. Faz parte dessa recuperação essa conversa?
Não faço distinção das pessoas para conversar, se são evangélicas, católicas ou ateus. Vou conversar com o ser humano. Se esse ser humano mora em um bairro que tem um legado construído, você precisa fazer a pessoa entender o legado, o que foi o governo que construiu que tem um partido que ajudou a construir. Então, você faz a proposta de que pretende fazer de novo.
É importante lembrar que o Haddad ganhou as eleições para prefeito contra José Serra em 2012 quando o Zé Dirceu estava sendo julgado. O julgamento foi feito durante as eleições, e ele ganhou.
Nós perdemos 2016 no maior processo de condenação de um partido político. E perdemos porque não tivemos coragem de ir para a rua nos defender. Quando você leva seu cachorro para passear, se um maior late ele enfia o rabinho entre as pernas, ele perdeu. Por menor que ele seja, ele tem que latir e se fazer respeitar.
Em 2016, o PT não quis fazer comício em Santo André, São Bernardo, Diadema, Mauá, São Paulo, Guarulhos, Campinas, Osasco. Não quis porque as pessoas estavam receosas de ir para as ruas. Faltou enfrentar a situação. Quando você tem uma doença grave, uma agressão grave, não se esconde. Você enfrenta.
Eu decidi enfrentar a Lava Jato e precisava provar. Ainda não provei de tudo, ainda vão descobrir mais coisas. Moro é mentiroso. Precisava provar que Dallagnol era mentiroso, sobretudo nas acusações contra mim. E quero provar. Vai demorar mais cinco anos, não tem problema.
Juca – E os evangélicos?
Temos que conversar. Quero até fazer discussão com eles. Quero mostrar quem foi o presidente que mais os tratou com respeito. Quem foi? Coisas concretas feitas por mim, o respeito que tive por eles, a relação que tínhamos. Não esse negócio de me batizar, nunca neguei que sou católico. Ao mesmo tempo, o Estado tem que ser laico. Tem que respeitar as pessoas, independente da sua fé. O Estado tem que respeitar o evangélico, o católico, judeus, religiões africanas. Esse é o papel do Estado. Tenho certeza que fiz isso. Pergunte para Edir Macedo, Crivella, quem tratou eles melhor, quem tratou com mais decência.
Juca – Estou batendo nesta tecla por uma razão. Vi uma pesquisa em que 58% das mulheres negras evangélicas têm um poder muito maior do que somos capazes de supor dentro de suas famílias, de convencimento. Em regra, este contingente apoiou e votou no Bolsonaro.
Mas também já votou em mim. A cada eleição as pessoas mudam de acordo com a quantidade de informações que elas recebem. Eu tenho certeza de que aquela tal de mamadeira que inventaram – e não dizer o nome aqui – não pegaria em mim. Pelo histórico que tenho com o povo brasileiro. Vou conversar com essa gente outra vez.
O PT precisa conversar. O PT tem muita gente evangélica. O que não dá é pra ficar quieto. Não dá para a pessoa contar uma mentira a seu respeito e você fingir que não ouviu. Tem que ir para cima. Com respeito, mas ir para cima.
Veja a agressividade como que alguns pastores falam com os evangélicos. É uma coisa muita agressiva, quase violenta. Você pede dinheiro para a pessoa de forma agressiva, promete um milagre de forma agressiva. Se não acontece o milagre, ainda assim, você é o culpado. Porque você não tem fé. Que história é essa?
Hoje o senhor tem uma preocupação em relação a conversar com evangélicos?
Então eu acho que tem espaço muito grande para discutir religião neste país. Muito grande. E até tenho jeito para ser pastor (risos), com esse cabelo. Eu posso ser pastor, posso até ser padre, é só a Igreja (Católica) acabar com o celibato que eu topo.
Trajano – O papa até quer acabar, mas… Já que citei aqui o filme Dois Papas, vamos falar do filme Democracia em Vertigem?
Deixa eu falar só uma compreensão que eu tive do filme Dois Papas. Eu não sei se eu consegui compreender bem… porque eu estou na média da inteligência nacional…
Juca – Quem dera, presidente, deixe de modéstia, menos, menos…
O filme é muito condescendente com o papa alemão (Bento XVI) e bem mais duro com o papa Francisco. Eu vi um artigo do Leonardo Boff defendendo ele, e eu não sabia das qualidades do Ratzinger antes de ler o artigo, e quando o Boff diz você tem que levar em conta. Mas o filme mostra um Ratzinger muito bonzinho… E sobre Democracia em Vertigem, meu caro…
Juca – Desde que Democracia em Vertigem que foi indicado para o Oscar (de melhor documentário) está doendo o cotovelo de tanta gente. É uma dificuldade para dar essa notícia… Mas o PT está pagando a Academia?
Trajano – Está pagando a Netflix?
Vai ver que eles vão dizer que o PT comprou a Netflix (risos).
Trajano – Ou o filho do Lula…
Juca – Teve um aí uns tempos atrás que disse que o PT estava pagando o New York Times…
Quando eu vi o filme eu achei que a grandiosidade do documentário foi a narrativa da Petra (Costa, diretora). A sinceridade da narrativa, de colocar a família dela, uma naturalidade que eu não sei quantas pessoas teriam a coragem da sinceridade dela. Foi uma atitude brilhante. Quando ela ganhou (a indicação para concorrer) eu liguei para ela e apontei: você pode ficar certa que a sua narrativa é um dos pontos fortes do filme.
Trajano – Ao contrário do ex-capitão, que não viu e não gostou, você viu e gostou… Mas eu queria entrar numa pergunta aqui sobre esses dois meses em que você mesmo diz que está solto, mas não esta livre. O reencontro com a militância, os familiares, amigos, e gente do povo. Quando você entrou na Polícia Federal, pra ficar 580 dias, e agora você revendo essas pessoas, o olhar, a fala, as angústias, que paralelo que dá pra fazer?
Eu fui outro dia na Polícia Federal para tirar passaporte. Eu não quis mais tirar passaporte diplomático. Hoje ou amanhã vai ficar pronto, preciso ir buscar. E depois eu tenho que comunicar alguns juízes que eu tenho um convite para ir a Paris receber um título de Cidadão Parisiense.
Juca – Isso vai dar uma ciumeira em Higienópolis…
Depois ainda vou ver se faço uma visita à Alemanha, Inglaterra, Espanha, Portugal. Depois eu gostaria de cumprir agenda em Harvard, aonde o Moro vai tanto, espero que apareçam… Então, eu vou tentar conquistar o meu direito de viajar e continuar brigando pela minha liberdade plena…
Trajano – Mas e o reencontro com as pessoas?
Eu, durante os 580 dias que estive lá, em nenhum momento me permiti ter qualquer começo de depressão. Tudo pra mim que acontecia, por pior que fosse, eu tinha na minha cabeça que tinha muita gente pior do que eu. Eu estava com saúde, eu tinha um colchão pra dormir – embora me doessem as costas –, eu tinha cobertor, eu tinha papel higiênico que eu comprava, sabonete que eu comprava, eu bebia água que eu comprava, comprava meu café. Então, toda vez que vinha uma coisa ruim eu falava: “Não, eu estou melhor do que muita gente. Eu tenho que estar preocupado com esse povo, não comigo”. Quando eu saí, eu saí nesse período, perto de Natal, ano novo, muita gente já parando, viajando. Fui pra casa. Fui fazer meu milésimo gol lá campo do MST. E eu estou me preparando agora para começar a viajar o Brasil.
E eu não quero começar a viajar o Brasil com raiva. Eu quero viajar falando das coisas que eu acho que tem que acontecer. Não é possível aceitar que neste país tenha gente passando fome. Em nome de tudo que possa ser sagrado, não é possível um país do tamanho do Brasil ter gente passando fome. Não é possível um presidente da República ficar regateando se vai dar R$ 1.039 ou R$ 1.045 de salário mínimo. Ele só tem que saber que no meu governo o salário mínimo aumento 74% acima da inflação. Que 94% das categorias de trabalhadores que fizeram acordos salariais ganharam aumentos acima da inflação.
Ele só que saber que é possível, e é bonito, as pessoas tomarem café, almoçar e jantar todo dia. Tem que saber que o aposentado já se aposentou em 30 minutos, que a gestante já recebeu o auxílio-maternidade e o trabalhador doente que passou por uma perícia médica sabia que receberia dali a 10 dias – no tempo do Fernando Henrique levava 10 meses porque não tinha perito. Ora, ele tem que saber que este país pode ser consertado e eu vou viajar pra dizer isso. Quero viajar por que quero defender uma política de cultura neste país. Não é possível que um artista da qualidade do Wagner Moura tenha feito um filme e eu vi ele dizer numa entrevista dele que ele não ganhou um centavo até agora. E não consegue lançar o filme porque tem uma censura. Eu até sugeri num ato de cultura que teve no Rio de Janeiro que o Wagner Moura podia fazer uma frente de lançamento, eu poderia participar, no Anhangabaú, no centro do Rio, vamos lançar na rua e deixar o povo ver. E vamos mostrar a mediocridade de um governo que acha que pode ter o direito de censurar um filme porque está contando uma parte da história que ele não gosta.
Talita – Desculpa, mas você acha que existe algum interesse do presidente da República em pensar em tudo isso? Fora a agenda econômica, haveria interesse em discutir esse tipo de pauta, a fome da população?
Talita, o ideal seria que o presidente das República se despisse de toda a raiva, de todo o preconceito e de toda bobagem que ele venha a pensar, e saber que ele agora é presidente de 210 milhões de brasileiros, e ele tem que pensar em atender a todas as pessoas. E tem que pensar nas pessoas mais carentes, é pra isso que o Estado deve funcionar, para cuidar das pessoas mais pobres. Não é pra cuidar do setor financeiro. Não é pra destruir direitos trabalhistas como eles estão destruindo. Não é pra fazer uma sociedade acreditar que trabalhar no Uber é ser empreendedor. As pessoas trabalham com Uber porque não têm possibilidade de ter um emprego formal, com carteira assinada, com Previdência Social, com 13º, com férias.
Juca – Não sei se o senhor conhece um youtuber que a garotada gosta muito, chamado Felipe Neto. Ele fez uma crítica à precarização do trabalho, agora chamada no Brasil de empreendedorismo, dizendo que empreendedorismo no Brasil está sendo confundido com sobrevivência.
É que as pessoas novas não compreendem isso. Na década de 1950 e 1960, tinha muitas mulheres que trabalhavam em casa. Pegavam nessas fábricas de costura, roupas, shorts, camisetas, cobertor, para costurar em casa para fora. No final do mês não ganhava nem um salário mínimo, não tinha benefícios, férias, natal, ano novo, nada. Brigamos feito malucos para dar dinheiro para essa gente. Não tinham benefícios, não tinha férias, não tinha descanso, Natal, ano novo, nada. Brigamos que nem malucos para dar direitos para essa gente.
Querem que as pessoas voltem a trabalhar, achando que um cara que está entregando pizza de bicicleta é empreendedor. Então, não pode tratar o povo como palhaço.
Juca – Não se pode mais deduzir do imposto de renda e o INSS da empregada doméstica.
Veja, só terminar essa questão delicada. O cidadão vai trabalhar no Uber porque no Brasil predomina a visão de que é melhor pingar do que secar. Se você ficar desempregada, você vai trabalhar de qualquer coisa. Vai ganhar um terço do que ganha, não tem direito a nada, mas tem que trabalhar, tem que levar o leite pra casa.
É normal isso. Esses dias estava conversando com um motorista de Uber que tinha um carro e vendeu. Agora está trabalhando alugando o carro. Paga 1.600 de aluguel no carro e tira de 1.500 a 1.600, que é a parte dele. Mas, obviamente, quando ele trabalhava tirava o dobro disso.
Essa gente está vivendo mais precarizado o possível. As pessoas aceitam trabalhar.
Talita – Você acredita numa insurgência popular por conta disso, como tem acontecido na América do Sul?
Temos que fazer com que o povo se mobilize, vá à luta para conquistar seus direitos. Talita, você entrevista muita gente do movimento sindical, desde a quebra do Lehmann Brothers (crise de 2008) até hoje, tivemos 165 países que tiveram mudanças na legislação trabalhista. Só em três teve alguma melhoria. Estamos voltando ao tratamento de antes da escravidão. Estão dizendo que isso é bom.
E o que faz o ministro da Fazenda (refere-se ao ministro da Economia, Paulo Guedes)? Você não vê dizer a palavra crescimento, desenvolvimento. Eles só falam em vender. Deveria ser presidente de uma associação de mascate e nunca ministro da Fazenda. Não tem criatividade, não pensa. Não pensa no Brasil. Como pode vender tudo? Como vamos arrumar dinheiro?
Quero estar junto dos outros partidos, com Boulos, Dino, Haddad, CUT, Força Sindical. Sonho em alguns movimentos. Um que me chama atenção é tentar criar consciência da soberania nacional. Soberania nacional não é defender empresa, é defender país. É defender nossas riquezas do solo e subsolo da mesma forma como defendemos fronteiras. Defender florestas, água, educação, saúde, investimento em pesquisa. É uma coisa total. Soberania é defender a qualidade de vida do nosso povo.
Um país que não é soberano, que o presidente bate continência para outro presidente, diz “eu te amo, eu te amo” e o outro nem vê. É um país sem respeitabilidade. Não tem coisa pior no mundo do que não ser respeitado pelos seus pares, pelos vizinhos. Eu queria ser respeitado pelo Evo Morales mas antes queria ser respeitado pelo Bush, pelo Obama. Fazia questão, adotava a teoria do Chico Buarque: não grito com Evo Morales e não falo baixo com os Estados Unidos. Falo igual com os dois. O Brasil tem tamanho. Vivi isso graças a Deus, graças ao trabalho do Celso Amorim. Vivi um momento em que o Brasil era respeitado pela China, pela Índia, Alemanha, França.
Juca – Contudo, o senhor está com os bens bloqueados até hoje. No processo chamado “quadrilhão” o senhor foi absolvido. As palestras pelas quais é investigado, agora a PF diz que aconteceram e são legais.
Há cinco anos me investigam. Pegaram meus discursos. Acho que tiraram cópia para aprender. Ele tem matéria do meu debate, filme do meu debate, entrevista com vários presidentes. Eles estão há cinco anos e não tem nada.
Como vive com bens bloqueados?
Sobrevivo. Tenho aposentadoria como anistiado político, 8 mil e poucos reais. Não tinha entrado com aposentadoria por tempo de serviço. Por que ia ser presidente, não queria ter duas aposentadorias. Não reivindiquei. Agora fui tentar reivindicar.
Trajano – Vai ter que entrar na fila do INSS, como 2 milhões de brasileiros.
Sou um cara que de baixo custo. Não vou em restaurante, nem um terno meu me serve. Eu emagreci 9 quilos. Nos últimos meses na PF estava andando na esteira 10 quilômetros por dia. Colocava o pen drive na televisão, ficava vendo e andando. Quando o cara falava algo que não gostava, aumentava e corria mais. Gostava de ouvir cantos gregorianos.
Talita – Seriados, o senhor está assistindo Merlí?
Terminei de assistir. Fui ligar para a Chaui nesses dias sobre uma palestra, disse que gostaria que ela assistisse ao Merlí para ela dizer se está correto aquelas coisas que ele fala…
Juca – Sim, sim, dos filósofos, está correto, sim, mas não sou Marilena Chauí para dar essa resposta. Presidente, retomando uma questão que o Trajano tocou, acho que certas coisas que o senhor viveu passam despercebidas. Por mais duro que seja, voltar a elas é importante. Nos 580 dias que passou na prisão o senhor dizia que tinha gente em pior situação, que pensava no Brasil e relevava o que acontecia com o senhor. Mas o senhor teve dores dessas que não se curam. Perder um irmão é terrível, mas faz parte. Mas perdeu um neto. Como superar isso, lidar com isso?
Não se supera. Acho que a morte de um filho, de um neto é uma coisa insuperável. Eu até disse para a Marlene (nora, mãe de Arthur) que não tem palavras para te confortar. Vamos rezar para que o tempo se encarregue de fazer com que você consiga amenizar o sofrimento. O Arthur é uma criança muito especial. Queria ir no enterro.
O que me deixou meio puto com a morte do Vavá, eu queria ir ao enterro, foi a mais esdrúxula possível. Permitiram que eu fosse a São Paulo, mas não que eu fosse ver o Vavá. O Vavá que fosse me ver. Ou seja, decidiram que o Vavá ia em um quartel me ver e que não poderia ter imprensa, ninguém. Como eu ia exigir que os parentes levassem o defunto para um quartel? Achei isso de uma grosseria, de uma desumanidade, que não consigo entender como alguém toma uma decisão dessa. Então, me ofendeu muito.
Perdi outros companheiros. O Sigmaringa Seixas foi me visitar, era muito meu companheiro, um irmão. E ela estava triste e às vezes queria chorar e nesse dia eu fiquei bravo com ele e disse: se é para você vir pra chorar, não venha. Não quero tristeza. Meu médico que me fazia acupuntura, nunca pensei que fosse morrer de tão saudável que era. Morreu. Teve um câncer e morreu. Então, Juca, a gente vai aprendendo a lidar com o sofrimento. Às vezes não ia tomar banho de sol porque o tempo estava feio e em vez de ficar puto da vida eu pensava: porra, tem tanta gente que não consegue tomar banho de sol, que mora em caverna na China. Por que eu tenho que ficar lamentando?
Juca – Presidente, e o Corinthians, que falta lhe fez no seu dia a dia?
Lá (na prisão) a gente não podia ver esporte, só tinha TV aberta. Só via coisa chata pra cacete. De vez em quando tinha um futebol. Eu fiquei triste, o Corinthians está muito ruim. Sou de uma tese de que o time de futebol precisa compreender a lógica do Real Madrid, do Barcelona, a lógica dos times ingleses. Ou seja, se você quer lotar estádio, se você quer ganhar dinheiro, se você quer vender camiseta, você tem que ter um time bom.
Eu saía da minha casa na Vila Carioca (bairro da região sudeste de São Paulo, próximo a São Caetano) para ver o Santos jogar. Para dar uma ideia: Santos e São Paulo, em que o Pagão estreou no São Paulo e São Paulo ganhou de 4 a 1; o Santos fugindo de campo; o Pelé expulso; depois caiu Dorval… Eu estava lá porque eu gostava do bom futebol. Eu fui ver o Palmeiras jogar muitas vezes, tinha um timão. Os times têm de ficar bons para o pessoal ir no campo, lotar o estádio.
Veja o jogo do Real Madrid, do Barcelona, tudo lotado. O Flamengo está lotando. Uma maravilha ver jogo do Flamengo no Maracanã, um espetáculo. Por que o Flamengo está assim? Porque o time está bom. Ele sempre jogou no Maracanã, agora ele montou um time razoável e o técnico conseguiu criar um padrão, motivação.
Trajano – O que acha dos técnicos estrangeiros? Alguns técnicos brasileiros estão reclamando disso, se sentindo desprestigiados.
Eu acho isso uma bobagem… Todo mundo tem seu time, mas todo mundo adora o bom futebol.
Juca – Mas o senhor gosta mais do Corinthians ou do bom futebol?
Eu gosto do Corinthians. O Corinthians faz parte da minha vida desde os 9 anos de idade. Eu comecei a torcer para o Corinthians morando em Santos. E no ano seguinte que eu comecei a torcer pelo Corinthians, o Santos foi campeão em 55 e 56. Depois eu estava no Pacaembu quando o São Paulo ganhou de 3 a 1 (tarde das garrafadas, lembra Juca). Então eu sou corintiano, é uma parte da minha vida. Agora, eu gosto do bom futebol.
Juca – Atribui-se ao senhor a boa fase do Corinthians. Eu mesmo um dia escrevi que o melhor presidente que o Corinthians jamais teve foi o presidente Lula. O Luís Paulo Rosenberg ficou muito bravo comigo. O Andrés Sanchez também. Eu não ligo. O Sanchez não teve nenhum gesto de solidariedade em relação ao senhor. Como entender isso tudo no mundo do futebol?
Eu não sei. Eu gosto das pessoas, eu não peço para as pessoas gostarem de mim. Eu gosto do Corinthians, diria que amo o Corinthians. Mas eu respeito o bom futebol.
Agora, estive preso e recebia recados de companheiros que o Andrés tinha mandado abraço. No dia em que ele me procurar, eu continuo sendo amigo dele. Acho que o segundo mandato dele não foi o mandato que ele mesmo esperava que pudesse fazer.
Juca – O grupo Democracia Corintiana quis abrir uma faixa em Itaquera por Lula Livre e não foi permitido.
Trajano – Não sei se foi por ele, exatamente por ele.
Não sei, mas de qualquer forma eu sempre tive uma boa relação. Eu não conversei com ele desde o dia 7 de abril de 2018. Quem sabe a gente se encontra um dia desses…
Juca – O senhor teve alguma influência mesmo na gestão do Corinthians? Atribuem Itaquera ao senhor…
Não tive. Uma bobagem que se inventou. Se inventou a bobagem que eu era que tinha mandado construir o Itaquerão. Eu, na verdade, queria é que o Morumbi fosse a sede da Copa.
Juca – Disso eu sou testemunha.
Queria, mas o Kassab não queria. Depois o Corinthians começou a construir o estádio. Se inventou que aquele estádio iria abrir a Copa do Mundo e daí pra frente se exigiu que gastasse um dinheiro que não poderia gastar. A Fifa exigiu elevador particular… Manda para aquele lugar! Fazer coisa particular e o Corinthians fica com a dívida?
Não conheço os detalhes, mas acho que o Corinthians em algum momento foi presunçoso em não resolver logo o negócio da publicidade do estádio. Sabe aquele negócio de eu posso mais, eu vou ganhar mais. Então, meu caro, foi isso. E se o time não estiver bom, não vai arrumar.
Trajano – Então agora é que não vai arrumar mesmo, então já era.
Juca – Você é anticorintiano…
Estou preocupado agora porque estão vendendo moleque com 16 anos e comprando velho com 35. Não pode ir pra frente. Até o Kaká deu uma entrevista falando: fui embora com 23 anos, ainda é cedo pra gente ir embora, podia ser um pouquinho mais. Poderia jogar aqui.
Porque, senão, a molecada vai embora e daqui a pouco você vê o Tite fazer uma convocação e não se conhece ninguém. Onde jogava aquele cara, que time que ele era. Não é correto isso. Com o futebol brasileiro não é correto.
Se bem que lá também, você pega os times melhores da Europa e vai perceber que tem 10 estrangeiros no time titular. Atrapalha o crescimento do futebol lá. Mas futebol é uma máquina de produzir dinheiro. Eu vejo menino de 17 anos ser vendido por 150…
Juca – Sim, esse menino Reinier foi vendido por 35 milhões de euros para o Real Madrid.
Trajano – Mudando de assunto. Eu li uma coluna da Eliane Brum que foi muito comentada, chamada “Os Cúmplices”. Eu peguei uma frase que abre esse artigo dela: “Em 2020, cada um saberá quem é diante de uma realidade que exige coragem para enfrentar e coragem para perder”. É um pouco o tom do que o Lula falou aqui. Tem de enfrentar, bloco na rua, não se omitir. E tem que estar preparados para perder. Não é isso?
Isso. Eu fui no Congresso do PT e fiz um pronunciamento em que eu falava as razões pelas quais o PT existia. Porque se não for para o PT cumprir determinadas coisas, não haveria razão de eu e outros companheiros, como Olívio Dutra, Jacó Bittar, José Ibrahim, Apolônio de Carvalho, criar um partido político. Eu podia ser autêntico do MDB, já estava criado, não tinha de ficar me esforçando. Passei quantos anos justificando minha barba? Passei quantos anos justificando a estrela vermelha? É um negócio maluco. Eu levava até Jesus Cristo barbudo: a gente é barbudo também. Vocês não tiveram isso com a barba dele, só com a minha? Um preconceito desgraçado.
Por que nós criamos um partido? Para dar vez e voz àqueles que nunca tinham tido vez e voz. Bem claro isso. Aqueles que estavam habituados a só bater palmas. Nós queríamos que aqueles que só batiam palmas, subissem no palanque. E criamos um partido.
E para que a gente quer o partido? Para fazer a transformação social. Não estou falando de revolução. Estou falando da transformação que é possível fazer na democracia.
Eu provei. E queria voltar em 2018 (participando da eleição presidencial) porque eu queria radicalizar mais. Radicalizar a democracia, radicalizar os direitos das pessoas. Se as pessoas podem comer três vezes ao dia, vão comer três vezes ao dia e ter mais uma ceiazinha. Por que que não pode?
Por que que pode uma pessoa só juntar 40 bilhões na sua conta pessoal e você ter um monte de criança aí no Glicério pedindo esmola e comendo na rua, do lixo.
Quando vejo a Globo fazer campanha do Criança Esperança… vão dizer que esse Lula é sectário. Não! Por que a Globo não dá da rentabilidade dela o dinheiro para o Criança Esperança? Por que tem de fazer campanha de arrecadação? Por que a Fundação Roberto Marinho não faz isso?
Por que essa gente não tem pelo menos o coração que têm ricos estrangeiros que dão prédios para fundações, que fazem universidades? Por que não faz aqui? Que paga imposto sobre herança, que aqui não paga…
Talita – O senhor falou em reconquistar…
A minha ambição de voltar era porque acho que eu podia fazer muito mais. Esses dias eu estava respondendo uma pergunta e falavam: “ah, mas o governo do Lula só deu certo por causa do boom das commodities”.
As pessoas hoje estão exportando a tonelada de soja a quanto? No meu tempo valia uns R$ 2,60 e hoje está quase R$ 4. Essas pessoas estão ganhando o dobro pela mesma tonelada.
O problema não é o boom de commodities. O que nós fizemos nesse país foi o boom da participação e da inclusão social. Eu disse outro dia: o Brasil cresceu, entre 1950 e 1980, 7% em média ao ano. Por que não teve inclusão social? Porque pobre nunca entrou no orçamento. E pobre nunca esteve na mira da classe dirigente a não ser para apanhar. Apanhar, ser preso, porque nunca levaram em conta. Quando você começa a política de inclusão social, aí começa nos bares a classe média mais grã-fina a dizer ‘ah, porra, o aeroporto parece rodoviária, está cheio de pobre, você vai lá tem cara com mala, cara que não sabe entrar no avião’, ‘você vê, eu fui no Ibirapuera estava cheio de pobre lá participando’.
Mas desse pessoal (classe média), estou vendo aqui um dado, segundo a última estimativa, 56 bilhões de dólares, equivalente a 3% do PIB brasileiro, evadiram-se para fora do país no ano passado.
Lula – Juca, não gosto de falar porque muita gente fala que eu sou muito crítico à imprensa. Veja uma coisa, o ufanismo que alguns setores da empresa estão fazendo para tentar mostrar que o Brasil está dando certo é de uma coisa alucinante de tamanha mentira. Aqueles comentaristas econômicos da Globo, aquele comentarista econômico dos outros canais de televisão, (dizendo) ‘agora vai, porque agora vai, a Bolsa chegou a 120’… O que é que tem a Bolsa chegar a 120 e não gerar emprego?
Quando eu estava na presidência a Bolsa estava 71 mil pontos e nós criamos 22 milhões de empregos com carteira assinada. Por que que agora a Bolsa está com 120 mil pontos e não gera emprego? Ora, o problema deste país é o seguinte: embora ele seja tão otimista, a verdade é que não está entrando dinheiro de fora, está saindo dinheiro do Brasil. Os caras estão indo na Bolsa especular e vão embora.
Você está lembrado que há 10 anos a grande preocupação nossa era criticar a taxa de juro, a Selic, porque a gente ficava fomentando o sistema financeiro, não é isto? Por causa do título. Agora está lá embaixo a taxa Selic, você viu alguém reclamar? Não, sabe por quê? Porque os bancos não estão mais ganhando dinheiro com título, eles estão ganhando dinheiro no fundo de aplicação da própria Bolsa e vão tirando dinheiro para fora.
Sabe quanto dinheiro entrou no último ano que eu governei esse país? 65 bilhões de dólares. Então você sabe o que eu penso? O Bolsonaro, o Guedes, e quem mais ele quiser, poderia pegar – tem um livro aí que eu não sei se dei para vocês, o meu livro – que deveriam ler, só para criticar a gente, mas também copiar, se eles copiarem a gente eu não vou dizer que é plágio. Se eles voltarem a dar comida para o povo, dar emprego para o povo, pagar salário para o povo e respeitar o povo, não vou dizer que é plágio.
Juca – Você não torce para esse governo dar errado?
Lula – Não dá para torcer, em nome da coisa mais sagrada que eu tenho na vida, não dá pra torcer pra dar errado. Porque quando dá errado, quem perde é o povo. Eu quero que ele faça o que precisa ser feito.
Trajano –Mas não vai conseguir. Todo mundo sabe que eles não vão conseguir, porque eles não pensam assim, eles não querem isso.
Pois é, mas deixa eu te falar uma coisa… Quando as pessoas não conseguem, as pessoas… Sabe por que eles não mudam mais rápido? Porque tem muito puxa saco. Você veja, não é fácil as pessoas que torceram tanto para derrubar o PT, que torceram tanto para o impeachment da Dilma, que rezaram e fizeram até procissão para o Lula ser preso, não é fácil essa gente agora, sabe, encontrar uma rota de fuga e deixar de defender o governo. Eles agora têm que engolir, estão percebendo que a comida não está boa, que é indigesta, vai engasgar, mas enquanto o Guedes estiver entregando o patrimônio público para eles, está ótimo.
Então, não quero que continue assim, pelo amor de Deus, quero que esse cara acabe logo com esse negócio do cara ficar esperando dois anos na fila da Previdência, que se libere isso. Gente, chama o (Carlos) Gabas, que era funcionário de carreira da Previdência. Chama o (José) Pimentel, que era deputado, é senador, do Banco do Brasil, o amigo do Bolsonaro. O Bolsonaro se tiver um pouco de humildade, chama o cara e fala ‘Gabas, me ensina aqui como que faz, cacete?’. Ao invés de trazer quatro, sete mil soldados, ‘me dá uma dica aqui, como é que eu faço isso aqui’. O cara vai ensinar, o cara vai ensinar.
Gente, eu estava dizendo, o Fernando Henrique Cardoso teve uma greve da perícia médica da Previdência Social. O Fernando Henrique Cardoso acabou com a perícia médica pública e contratou terceirizado. Quando eu cheguei na presidência, você sabe que o cara se machuca, ele fica os primeiros 15 dias por conta da empresa, depois passa para a Previdência. Se não tem perícia, esse cara não volta a trabalhar, se ele não volta a trabalhar quem está pagando é a Previdência, é o dinheiro público que está sendo gasto com uma pessoa que poderia ter voltado a trabalhar. Demorava de nove a dez meses cada perícia. Nós recontratamos o pessoal da previdência privada e nós fizemos mudanças e criamos o número 35.
O cara do Oiapoque ao Chuí, ele ligava 35, marcava a consulta dele no perito, e passamos a marcar no máximo em oito dias a consulta dele aqui na região mais conturbada de São Paulo. Tinha lugar que era marcado no mesmo dia, salário-gestante, aposentadoria por tempo de serviço, tudo era feito quase que automático. Então se essa gente tem dificuldade, o presidente do Inamps (INSS), que eu não sei quem é, ora, chama as pessoas que estavam lá no nosso tempo de governo, tem muita gente de carreira, e pede auxílio. Não se humilhar não, é obrigação, de quem sabe, ensinar, transferir tecnologia.
Trajano – O governo não repôs, saíram 6 mil funcionários do INSS, teria que haver concurso público. O Guedes melou. Conclusão, por isso esse atraso terrível, 2 milhões de brasileiros, seguro maternidade, licença maternidade, a própria aposentadoria, tudo isso a fila que a gente não sabe. Agora recruta 7 mil militares. Como você falou, por que que não dá esse emprego, essa função, para quem precisa? Para quem está desempregado agora?
Tem uma coisa, Trajano, no Brasil, que é o seguinte: as pessoas falam que a máquina é inchada. Compara com todos os países nórdicos, com os países europeus, a quantidade de funcionários do setor público com a população, em relação ao Brasil. Você vai perceber que o Brasil tem menos que todos. E no Brasil tem uma coisa engraçada, quando as pessoas querem enxugar a máquina, mandam as pessoas embora e não repõe. Eu posso dizer, olhando como se estivesse olhando para uma coisa sagrada: não tem jeito de você melhorar a saúde se você não contratar mais médicos, se você não contratar mais enfermeiras, se você não comprar mais equipamentos. Não tem como você melhorar a educação se não contratar mais professores, se não fizer mais laboratórios. Não tem como.
Juca – Mas eu queria retomar uma questão. Quando o senhor diz que não torce contra, porque se o governo der errado, quem sofre é o pobre. Tenho um amigo que assim que o Bolsonaro ganhou a eleição, cunhou para mim a seguinte frase: se esse governo der errado, vai ser uma merda e, se ele der certo, também vai ser uma merda. No sentido de que se ele desse certo, como é que você desaloja?
Acho que quem quiser fazer oposição ao Bolsonaro, tem que ter em conta que tem que ganhar dele sem o povo estar morto de fome. Não dá para você pedir para ele ser uma Hiroshima, para você poder ganhar. Você precisa ter argumentos e um programa para ganhar dele mesmo que ele faça uma coisa boa. E você sabe que ele não precisa fazer coisa boa, monta a fábrica de contar mentiras, do fake news, que já foi usada uma vez, que o Trump deve estar assessorando ele, então pode querer ganhar. O que que nós temos que fazer? Não permitir que a mentira vença outra vez.
Talita – Nesse sentido, você fala em reconquistar o eleitorado nas ruas. Mas existe uma guerra de narrativas nas redes também. O partido, o PT, pensa em alguma forma de investir nesse sentido?
Você sabe que para você transmitir uma verdade, tem que construir uma verdade. Para você construir uma mentira, você não precisa de uma grande narrativa. Mentira pode ser sem pé e sem cabeça. Vamos pegar na semana passada, por exemplo, eu fiz uma crítica ao Trump com relação ao Ahmadinejad e ao enriquecimento de urânio. O Bolsonaro, sem nenhum critério, numa coisa de mediocridade, colocou uma foto minha com o Ahmadinejad, dizendo ‘Lula fez acordo para enriquecer mais de 20% do urânio’. O que que nós fizemos? Nós publicamos um texto do Clóvis Rossi para provar como ele (Bolsonaro) é medíocre.
Mas a mentira não exige que você tenha competência não, a mentira grosseira que eles fazem… Você sabe que meu filho Fábio já foi dono da Friboi, da Vasp… A casa há 10 anos, em Piracicaba, era a casa do meu filho, eles diziam que meu filho tinha todas as fazendas de gado, Ferrari. Não tem critério, é muito difícil você disputar com a mentira, o que você tem que ter é persistência e paciência.
Talita – Mas você acha que você é mais importante fazer essa disputa nas redes do que talvez até nas ruas?
Não não, são duas coisas. Uma coisa não substitui a outra. Eu, eu sou um velho político, não tem nada que substitua um pegar de mão, um olhar no olho, não tem nada, nada. A relação política ela é química, é quando a química combina ela é duradoura. É por isso que essa gente fica nervosa, como é que podem bater tanto no Lula? Pensa bem, pensa bem. Eu, quantos anos faz que eu apanho?
Se você pegar quatro revistas brasileiras, tirando a Carta Capital, vai perceber que eu já devo ter mais de 100 capas contra mim. Se você pegar os jornalões, você vai perceber que tenho pelo menos umas 300 primeira página de cada um contra mim. Se você pegar só o Jornal Nacional, já tem mais de 400 horas contra mim. Se você pegar O Bom Dia Brasil, o Boa Tarde não sei das quantas, a Record…
O Aécio não aguentou uma capa da Veja e o bichinho se escondeu. E eu, eles sabem que eu não tenho uma relação fictícia com a sociedade, tenho uma relação de sangue. Tenho relação com as pessoas de muitos anos, e não de restaurante chique em São Paulo não, é de conviver em acampamento, de conviver na porta de fábrica na greve, então essa relação não termina assim.
Então você não tem noção do orgulho que eu tenho, sabe, que vai passar para a História como uma das coisas mais fantásticas, que foi aquela vigília na porta da Polícia Federal. Aquela gente, poderia dizer gente humilde, ficar lá, 580 dias com sol, com chuva, frio e calor, sendo ofendida, era ex-delegado da Polícia Federal que ia lá, vizinhos que denunciavam, e aquela gente não arredou o pé, todo dia cantando ‘bom dia, Lula, boa tarde, Lula, boa noite, Lula’. É uma coisa que não tem preço. Isso não é possível fazer pagando, isso é possível fazer com muita, muita, muita solidariedade.
E essa relação, graças a Deus, eu consegui fazer junto com o povo. É por isso que eu digo o seguinte, o sucesso do meu governo se deve única e exclusivamente à capacidade de governar do povo brasileiro. Eles acreditaram e deram força para que a gente pudesse fazer as coisas que nós fizemos nesse país. Então, eu estou aí nessa briga com muita disposição e vou tomar minha vida, eu gosto de brigar, gosto de conversar, sou um homem de paz, mas não levo desaforo.
Edição: RBA