Foram 38 dias de angústia até que a Justiça libertasse Lucas Bispo da Silva que, aos 19 anos, entrou para a lista de detidos sem provas pela polícia militar de São Paulo. O jovem morador de Heliópolis deixou o Centro de Detenção Provisória II de Guarulhos na noite desta segunda-feira (20) e foi direto para casa, onde familiares e amigos o aguardavam para comemorar sua liberdade.
O cabeleireiro foi acusado de roubar uma moto BMW às 7h30 do dia 13 de dezembro, no bairro do Ipiranga, zona sul da capital. No entanto, as contradições entre a versão dos policiais que prenderam Lucas e a da própria vítima, fizeram com que Nilson Xavier de Souza, desembargador da 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinasse sua soltura no último final de semana.
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Segundo os agentes do 46º Batalhão da PM envolvidos no caso, Lucas teria sido reconhecido pela vítima do roubo - o que assegurou que ele fosse abordado e preso no seu ambiente de trabalho. Os PMs disseram em depoimento que avistaram Lucas na rua e o levaram para a delegacia, informação que não bate com o depoimento da vítima, que diz ter sido levada ao local em que o jovem estava e fez o reconhecimento na própria rua.
Além do procedimento não ter seguido as determinações do Código de Processo Penal - segundo o qual após a vítima fazer uma descrição do criminoso, o suspeito é colocado com pessoas de aparência física semelhante para então ser reconhecido - a versão da polícia é refutada pela família e outras testemunhas.
Sem provas
Enquanto policiais acusaram Lucas sem apresentar nenhuma evidência, parentes afirmam que o jovem estava em casa no horário do crime. Eles alegam que as câmeras de segurança do prédio onde ele mora registraram o momento em que ele entrou no local, às 0h57 do dia do crime, e deixou sua residência para ir ao trabalho por volta das 10h. Os porteiros que trabalham no local confirmaram o mesmo.
Após ter saído de casa, o jovem relata que foi para a barbearia onde trabalha, a menos de 1 km de sua casa. Ele estava cortando o cabelo e um cliente quando, por volta de 11h, PMs entraram no estabelecimento. A narrativa foi corroborada pelo depoimento de duas testemunhas, sendo que uma delas também afirma ter sido abordada de forma intimidatória.
“Estas pequenas contradições, associadas com os relatos de pessoas que colocam o paciente em local diverso […] tornam temerária a manutenção da prisão, que é medida sempre excepcional antes de sentença penal condenatória”, decidiu o desembargador Xavier de Souza, ao aceitar o habeas corpus impetrado pela defesa.
Injustiça cotidiana
Marcelo Dias, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, que acompanha e denuncia casos de violência e prisões abusivas em São Paulo, comemora a liberdade de Lucas. Por outro lado, ele lamenta que esse não seja o procedimento adotado pela Justiça em muitos casos em que jovens periféricos são detidos sem provas.
“Esse habeas corpus é um caso de exceção. E é aí que vemos que os movimentos sociais e as denúncias tem tido muito peso para que esses habeas corpus sejam efetivados. Se não fosse a mobilização social, esse habeas corpus não seria concedido”, destaca Dias.
Fundador da organização SOS Forjados, Marcelo alerta que a prisão de Lucas segue um padrão que se repete em detenções da PM.
“A primeira questão é o local onde ele se encontra, a favela de Heliópolis. [Morar na favela] É um denominador para esse tipo de prisão arbitrária. A segunda é ter o perfil jovem, ser um jovem periférico. Já há uma condenação pelo porte, pela forma de se vestir, pela juventude. E, por último, é só a palavra do policial bastar para ter a prisão. Infelizmente, é mais um caso que se repete dentro dessa engrenagem louca de massacrar pobre e periférico”, critica, complementando que a contradição nos depoimentos dos próprios policiais também é regra em detenções como essa.
Na opinião do ativista, há uma ordem direta do Estado para que policiais executem prisões arbitrárias e criminalizem a pobreza. Morador da Vila Santo Estefano, o ativista em defesa dos direitos humanos também denuncia que há racismo estrutural por trás da atuação da polícia.
“Os pretos são a maioria nesse tipo de abordagem, mas se for preto e periférico, já está praticamente condenado. E é estranho porque se for pra Moema, pra Vila Madalena, o tipo de abordagem é diferenciada. É a localidade geográfica que conta e o Lucas estava em uma região condenada pela polícia. Somos alvo. Infelizmente estamos pagando um preço muito caro com nossa liberdade por conta disso”.
Em nota, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio afirma que inúmeras estratégias perversas do Estado visaram criminalizar Lucas, entre elas o uso da “‘a fé pública” do policial, o reconhecimento irregular, a falta de advogado na delegacia, a não escuta da delegada dos depoimentos contraditórios dos policiais.
A organização também ressalta a importância da mobilização social e dos familiares. “Lucas foi preso, mas a luta dos amigos, familiares foi intensa, provas foram colhidas, contradições foram apontadas. Incansáveis, indignados e muito revoltados não desistiram”, frisa o texto.
A volta para casa
Em entrevista ao Brasil de Fato, Gabriela Bispo da Silva, irmã de Lucas, reprova a demora do CDP de Guarulhos, que só liberou o jovem três dias após o habeas corpus ser determinado.
“Lucas e só mais um jovem forjado pelo Estado. Eles entram em nossa comunidade e escolhem a dedo quem eles irão incriminar. Isso nos chocou muito. Vemos acontecendo com muitos aqui dentro, mas nunca esperamos acontecer com gente, até porque Lucas não estava em nenhum local errado no momento, ele estava onde deveria estar, trabalhando”, diz Gabriela.
Mesmo com a ansiedade e revolta com a demora na liberação de Lucas, a jovem não pode conter a alegria ao ver o irmão voltar pra casa e por recebê-lo de braços abertos.
“Eu não conseguiria comentar com palavras esse momento, foi inexplicável, um momento único em nossas vidas. Um alívio, uma gratidão por ver ele sorrindo novamente. [A detenção] Só provou o que já sabíamos, provou a injustiça e desigualdade que existe nesse país. Nosso maior desejo é provar logo a inocência dele e apagar de nossas memórias tudo isso”, enfatiza.
Edição: Leandro Melito