“Coisa do demônio”, “chuta que é macumba”, “matam animais” -- essas são algumas das expressões e ideias que criminalizam, demonizam e marginalizam as religiões de matriz africana. Ao ponto de serem as pessoas praticantes dessas crenças as que mais denunciam ataques no Disque 100 do governo federal.
:: Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019 ::
Na contramão do preconceito e racismo, o fotógrafo candomblecista Roger Cipó desenvolve há dez anos uma pesquisa em torno da iconografia do candomblé e busca desconstruir o olhar da intolerância. Para ele, a visão colonizada sobre a fotografia afro-religiosa foi essencial na demonização e marginalização das religiões de matriz africana.
Cipó registra imagens que humanizam os cultos afro-brasileiros. O fotografo já circulou com seu trabalho por meio da exposição aFÉto - Uma série fotográfica sobre o Amor entre Orixás e Fiéis, que percorreu mais de quinze cidades do Brasil, entre 2017 e 2019. Agora, ele trabalha na fase de pesquisa para uma nova exposição e produz seu primeiro livro com fotografias de terreiros.
O trabalho, que começou pela militância no movimento afro-religioso, se desdobrou em outras áreas que tocam questões em torno do racismo. Hoje, além de fotógrafo, Cipó é um influenciador digital e também discute em seu canal do YouTube questões relativas à masculinidade e à afetividade negra.
Dando sequência ao debate iniciado no último dia 21 -- o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa -- nesta entrevista exclusiva, o fotógrafo Roger Cipó, de 28 anos, nascido em Diadema (SP), trata do desafio de reconstrução das imagens solidificadas pelo racismo religioso.
Brasil de Fato: Qual o objetivo e foco do seu trabalho?
Roger Cipó: Trabalho com pesquisa da construção de imagens nas religiões de matriz africana. Eu sou ogã em uma casa de candomblé e, nos últimos anos, esse trabalho tem se tornado uma ferramenta de diálogo para possibilitar que a sociedade veja as religiões de matriz africana sem a lente do racismo que, inclusive, construiu a imagem das nossas tradições a partir da produção de fotógrafos que historicamente que ocuparam nossos espaços. Não numa tentativa de promover as belezas das nossas tradições, mas uma tentativa de exibir como uma tradição exótica, de exibir como fetiche visual, que os olhares treinados na colonização tem e sempre tiveram para as nossas práticas.
O que eu tenho feito nos últimos anos também é evidenciar na minha pesquisa o quanto a produção de imagem na história das religiões de matriz africana de uma forma descompromissada ao enfrentamento do racismo, colaborou para que as nossas práticas fossem mais violentadas.
A produção deste tipo de fotografia também colaborou com a criminalização da religião?
Penso que os grandes ícones dessa fotografia, ali na década de 1950, foram pessoas que fizeram um trabalho até algum ponto importante.
Mas eu sempre uso esta imagem: o que era a sociedade brasileira na década de 1950, que ainda é pouco tempo após a suposta abolição da escravatura, que ainda mantinha pessoas pretas na marginalidade da sociedade.
A fotografia, que é meu trabalho, área que eu pesquiso, colaborou com o processo de demonização das religiões de matriz africana.
Como era ainda para essa sociedade, que sequer entendia as pessoas pretas como pessoas, ter acesso e ver imagens de pessoas pretas em rituais que tinha animais, pessoas dançando em contextos diferentes do habitual. Para não falar das particularidades das imagens que mostram sacrifícios de animais e rituais de iniciação.
Tenho responsabilizado essas imagens desses fotógrafos, por conta desse tipo de discurso que essas imagens construíram e o que isso deixou de herança na sociedade, ao ver que cristalizou-se uma ideia que religião de matriz africana, apoiada no racismo obviamente, como uma tradição demonizada, marginalizada e toda sua história tem visto aí.
A fotografia, que é meu trabalho, área que eu pesquiso, colaborou com o processo de demonização das religiões de matriz africana.
Como transformar essa construção de imagens 'exotificadas'?
Só a nossa atuação como pessoas que compreendem essa prática, e também compreende o quanto que o racismo impacta na construção dos nossos imaginários. Temos condições de reconstruir esses discursos por meio da fotografia, temos condições de significar e o que eu digo que a gente tem condições de humanizar as religiões de matriz africana.
Você já fez quantas exposições?
A minha principal exposição é aFÉto, que já circulou em pelo menos 15 cidades pelo país. Foi destaque do Festival Internacional do Rio de Janeiro, foi lançada no Instituto Pretos Novos, de lá veio para São Paulo no Aparelha Luzia.
Também foi destaque da programação de verão em Salvador na Casa Cultural do Benin e já expus essa mesma obra na Federal de Ouro Preto, em Mariana, e a última instalação de aFÉto foi na Federal de Vitória, além do Museu da Imagem e Som em Campinas. Circulou entre 2017 e 2019.
Qual objetivo da Exposição aFÉto?
aFÉto é justamente uma tentativa de humanizar esse discurso então se esperam uma fotografia "exotificada" das religiões de matriz africana, muito pautada só na imagem do ritual, numa tentativa da fotografia de desvendar o mistério que há 'por trás' dos rituais de candomblé.
aFÉto vem para mostrar que esses espaços são construídos por pessoas, porque as relações de afeto nas comunidades é o que garantiu que pessoas pretas devolvessem a humanidade para as suas comunidades mesmo.
É uma tentativa de desconstruir os olhares para essas tradições, porque pouco se fala das noções afetivas, das relações sociais dos terreiros de candomblé, ainda porque acredita-se que sequer a maioria dessas pessoas, sobretudo pessoas pretas que constituíam esses cultos, sequer são gente numa sociedade racista como esta.
Você conseguiu perceber se houve alguma transformação por meio das suas imagens?
Acredito que o trabalho colaborou para transformar a forma com que inclusive que profissionais de fotografia olhassem para religiões de matriz africana. Isso também trouxe uma forma de documentar as nossas práticas, outra forma de promover e difundir, na verdade, essas imagens nas plataformas digitais.
Então, por exemplo, Olhar de Um Cipó, que hoje tem mais de 50 mil seguidores no Facebook só, mas é o primeiro blog de fotografia de terreiro que ultrapassou a marca de 1 milhão de acessos. Então tudo isso, quase 10 anos depois, estou sentido aí a necessidade de colocar toda essa experiência no papel, trazer essas imagens no papel e garantir que a gente tenha outras referências, não só literárias, mas como visuais também quando o assunto for pesquisar religiões de matriz africana no Brasil.
Pessoas de outras religiões passaram a aprender muito e compreender as religiões de matriz africana de uma outra forma. Pessoas foram para o candomblé a partir desse trabalho, isso pra mim é muito importante. Eu vejo que esse trabalho foi e é uma forma de colaborar com a luta contra o racismo religioso de fato.
Edição: Leandro Melito