Em viagem à Índia, o presidente Jair Bolsonaro confirmou que fará, no sábado (25), uma visita ao Memorial de Mahatma Gandhi, líder da campanha de independência indiana na primeira metade do século 20. Referência de movimentos por direitos civis e liberdade em todo o mundo, Gandhi propagou a não-violência como método de luta e enfrentamento às opressões econômicas, políticas e sociais.
Apesar das diferenças ideológicas, Bolsonaro deverá colocar flores sobre o túmulo onde estão as cinzas do líder indiano, a exemplo do que fizeram os ex-presidentes brasileiros Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante seus mandatos.
A visita ao memorial ocorre a convite do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, principal representante do nacionalismo hindu e integrante do Bharatiya Janata (BJP). Fundado em 1980, o partido tem, em suas origens, ligação com o grupo paramilitar Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), responsável pelo assassinato de Gandhi em 1948. Hoje, por outro lado, a sigla diz estar alinhada com as ideias do líder independentista.
Assim como Bolsonaro, Modi encabeça um governo de extrema direita, aposta na liberalização da economia e na desregulamentação do mercado e é acusado de perseguir minorias e grupos opositores. Nos últimos meses, ele foi criticado por promover perseguições a muçulmanos por meio de mudanças na Lei de Cidadania do país.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, a professora de estudos religiosos Supriya Gandhi, bisneta do líder da independência indiana, afirma que Bolsonaro se junta ao governo local na tentativa de se apropriar e distorcer o legado de Mahatma Gandhi. “Eles querem um Gandhi despido de seu poder e de sua força radical”, analisa.
Supriya Gandhi é Ph.D. pela Universidade de Harvard e professora sênior na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em estudos religiosos. Na entrevista, às vésperas do 72º aniversário do assassinato de Gandhi, ela também critica a postura repressiva do governo indiano e comenta a relevância dos ensinamentos do bisavô. Confira:
Brasil de Fato: Mahatma Gandhi deixou como legado uma série de críticas e propostas sobre a sociedade indiana na primeira metade do século 20. Qual delas permanece relevante para a Índia hoje?
Supriya Gandhi: Eu acho que todas elas são [relevantes]. De certa maneira, Gandhi foi capaz de enxergar o futuro. Gandhi nos lembra as conexões entre democracia, busca da verdade, pluralismo e administração ambiental.
Hoje, líderes populistas e seus partidários prosperam em um mundo pós-verdade, reprimem a democracia e impulsionam a humanidade ao ecocídio.
A ideia de não-violência continua sendo levada adiante pelos trabalhadores da Índia ou é tratada como algo desatualizado, sete décadas após a independência?
A ideia de não-violência brilha através dos protestos pacíficos que estão surgindo em todo o país contra a emenda à Lei de Cidadania, que é discriminatória. O tempo dirá se esses protestos continuarão e se expandirão, mas eles já estão criando solidariedades entre classe, casta e religião.
O Estado está respondendo a esses protestos com medidas repressivas.
Considerando as reflexões de Gandhi sobre o hinduísmo, não é uma contradição que grupos religiosos fundamentalistas sejam acusados de cometer esses atos de perseguição e repressão contra os muçulmanos hoje? É possível supor que, se ele estivesse vivo, Gandhi estaria condenando esses atos e a posição do BJP nesses conflitos?
Não é uma contradição, pois esses atos de violência são praticados por quem admira a ideologia do assassino de Gandhi.
Essas práticas constantes de violência não são uma exceção. Elas fazem parte de uma estratégia multifacetada para mostrar às minorias seu lugar e garantir conflitos sociais perpétuos.
O legado de Gandhi está em jogo. No Brasil, por exemplo, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro fará uma homenagem no memorial de Gandhi em sua visita a Nova Delhi. Bolsonaro atua como defensor da indústria de armas e faz um discurso violento contra minorias. Como você vê esse tipo de homenagem e como analisa a apropriação do legado de Gandhi por políticos considerados autoritários?
Bolsonaro tem muito em comum com a liderança que está no poder na Índia, além de seu completo desrespeito às normas democráticas e à urgência da crise ambiental. Não é de surpreender que ele se junte ao governo local na apropriação de Gandhi e na distorção das ideias e do legado de Gandhi.
O governo e os grupos aliados tentam purgar os fatos sobre o assassinato de Gandhi. Eles querem um Gandhi despido de seu poder e força radical.
Edição: Vivian Fernandes