A mandioca ou o milho eram substitutos do pão de trigo desde a época colonial
Na recém-fundada São Paulo do século 16, o trigo foi plantado nos arredores do pequeno povoado, nos primeiros tempos da colonização. Ao longo do século 18, as plantações, que eram difíceis e pouco produtivas, acabaram e o costume de se comer farinha de trigo e pão diminuiu consideravelmente. Dessa forma, a cidade só voltaria a consumir pão com alguma regularidade em meados do século 19, depois de longas e complexas batalhas que envolveram importação de trigo de países distantes, novas e revolucionárias tecnologias, além da chegada de trabalhadores imigrantes com gostos diferentes.
Ao longo de todo o século 18, as padeiras da cidade travaram uma briga feia com o governo por causa das taxas e impostos sobre o trigo. Brancas pobres, moradoras da terra ou vindas do Reino, as padeiras vendiam pão em tabuleiros pelas ruas por meio de escravas, chamadas de quitandeiras. Vender comida em tabuleiros era uma antiga prática portuguesa que se disseminou na colônia e atravessou o período imperial com muitas resistências por parte das autoridades.
As quitandeiras em geral, e as padeiras em particular, eram figuras importantes, tanto que a Câmara da cidade discutiu o problema do pão por muitos meses ao longo de diferentes anos, como em 1726 ou 1739. As padeiras, como Isabel Peres Teixeira, Josepha de Moura, Anna da Silva, Escolástica e Catarina Vollosa e Josefa de Souza, eram as donas dos fornos e adquiriam farinha de trigo de fora, por meio de carregamentos que vinham do Porto de Santos. As constantes brigas com a Câmara nos revela a importância do consumo e da escassez do pão consumido na época.
A falta de pão para consumo diário no Brasil era corrente, conforme atestam relatos de viajantes, memorialistas e romancistas. “Pão e bolacha só apareciam à mesa nas casas-grandes mais opulentas; nas outras era um luxo raro”, escreveu Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos. O pintor Debret escreveu sobre um jantar usual no início do século 19: o “escaldado (flor de farinha de mandioca) […] substitui o pão, que nessa época não era utilizado no jantar”.
São Paulo não era exceção ao que dizia Debret e seguia os costumes nacionais. Aqui se consumia muito mais farinha de milho e de mandioca do que farinha de trigo. Vários fatores contribuíam para essa ausência do pão nas mesas brasileiras e, em especial, nas paulistas. Até meados do século 19, os brasileiros consumiam cotidianamente, sobretudo, milho e/ou mandioca. O viajante Robert Ave-Lallemant, ao andar pelo sul do país em 1858, comentou que o serviram “pão de milho, manteiga, carne-seca e um copo de vinho do porto”.
O trigo somente foi plantado em uma quantidade razoável no país, mais especificamente no Rio Grande do Sul, a partir da segunda metade do século 18 – o mesmo ocorreu na Argentina e no Uruguai. Ainda assim, a produção do Sul era levada quase toda para a Corte, onde servia para abastecer a mesa dos mais ricos.
Durante muito tempo, o pão consumido pela população era constituído pela farinha de mandioca e pelo milho, em suas mais variadas formas. Outro viajante, Alcide Dorbigny, ao falar sobre a cidade, em 1832, dizia: “A principal cultura é o milho, vendo-se, em compensação, poucas plantações de mandioca. Os habitantes dessa província consideram a farinha de mandioca como malsã, ao passo que, nas províncias do Norte, é a farinha de milho que assim é considerada”. A mandioca ou o milho apareciam como substitutos do pão de trigo desde a época colonial.
O naturalista e viajante inglês John Mawe escreveu em 1809: “Jantamos com apetite, mais ou menos às sete horas, galinha assada e mandioca, que substituía o pão. Este último é tão raro nesta região, que a aldeia de Barbacena, muito povoada, não pôde, embora situada no distrito mais abundante em grãos, nos fornecer senão uma rosca.”
Já o geólogo americano Orville Dalbert Derby, falando sobre a região de São Paulo e Minas Gerais na década de 1870, disse o seguinte: “Nunca prestei atenção à distribuição das farinhas, mas, conforme me lembro, nas partes de Minas e São Paulo por onde tenho andado, encontram-se geralmente as duas, parecendo-me ser a preferida a do milho. Creio que os antigos paulistas eram comedores de farinha de milho e angu, e até onde eles foram encontram-se o monjolo e roda de fubá. […] Ricos e pobres preparam a farinha de milho socando no monjolo, depois de macerados (e frequentemente apodrecidos, especialmente em São Paulo) os grãos, assando depois a massa num forno como o de mandioca. Canjica parece ser um prato especialmente paulista, e ainda hoje, em algumas mesas mais ricas (como a de D. Veridiana Prado), ela aparece quase constantemente.”
As quitandeiras continuaram com seu comércio de pães, bolos, pão de ló e outras iguarias durante todo o século 19, até o estabelecimento das feiras livres e a regulamentação do comércio de alimentos de ruas, numa luta constante contra a prefeitura e a Câmara da cidade. O trigo só entrou de vez na alimentação paulista com as grandes exportações americanas e russas de meados do século 19, que envolviam uma série de novas técnicas de plantio, colheita e exportação regulares por navios a vapor. Com isso, o preço do trigo baixou consideravelmente e o pão tornou-se um alimento regular nas mesas brasileiras.
Em São Paulo, essa exportação de pão se aliou à chegada de uma nova leva de habitantes vindos da Europa – os imigrantes. Os italianos passaram a entrar em números cada vez maiores para abastecer as lavouras de café. Inconformados com a dieta brasileira, exigiam trigo para o pão e para a pasta, feitos muitas vezes em casa. Minha avó costumava fazer macarrão até ficar muito doente e não conseguir mais ficar de pé, assim como sua mãe e sua sogra, que vieram da cidade de Pizo, na Calábria, para São Paulo.
O gosto pelo trigo aliou-se à ideia de transformação e modernidade no país naquela época. O pão e as padarias se espalharam pelas cidades. Já na década de 1930, o poeta modernista Manuel Bandeira escreve sobre as duas forças que moviam o país, imitando o barulho da ferrovia: “Café com pão/ Café com pão/ Café com pão / Virge maria que foi isso maquinista? / Agora sim / Café com pão / Agora sim / Voa, fumaça / Corre, cerca / Ai seu foguista / Bota fogo / Na fornalha / Que eu preciso / Muita força / Muita força / Muita força / Oô...”.
Edição: Camila Maciel