ATINGIDOS

“Terminar a casa era sonho, agora virou pesadelo”, afirma casal de Brumadinho (MG)

Após um ano, Celso e Laíssa receberam novamente a reportagem do Brasil de Fato para contar o que mudou neste período

Brasil de Fato | Brumadinho (MG) |
Celso e Laíssa se casaram dois meses após o rompimento, mas a festa foi adiada em decorrência do luto vivido pelas pessoas próximas
Celso e Laíssa se casaram dois meses após o rompimento, mas a festa foi adiada em decorrência do luto vivido pelas pessoas próximas - Guilherme Weimann

Exatamente 10 dias após o rompimento da barragem de rejeitos da Vale S.A., no dia 25 de janeiro de 2019, Celso Henrique de Oliveira, atualmente com 21 anos, recebeu a reportagem do Brasil de Fato em sua casa, na comunidade do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). Na ocasião, Celso deu detalhes de como escapou da morte por conta da troca de turno de seu trabalho na Brasanitas, uma quarteirizada da Vale responsável pela limpeza dos vagões da MRS - empresa encarregada do transporte de cargas.  

“Aqui em casa, desde que vocês foram embora, no começo, não voltou mais ninguém. Só agora que vocês voltaram. Aí agora na casa de outras pessoas eu já não sei falar ao certo. Faz muito tempo que eu não vejo nenhum jornalista na rua fazendo reportagem”, conta destacando que o último veículo que o procurou foi justamente o Brasil de Fato.

Há um ano, Celso relatou a dor da perda do primo, de amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Na época, ele fez questão de realizar a entrevista na casa em que pretendia terminar o acabamento para morar com a sua noiva, antes do rompimento da barragem. Desta vez, entretanto, preferiu conversar na casa de seus pais, onde mora atualmente: “Como a laje está no mesmo nível da rua, onde seria o portão, a gente consegue ver toda a lama. Por isso, a gente não está querendo ir mais pra lá. Se eu for fazer um terraço, ou outra casa mesmo, a gente ficaria lá olhando, sempre lembrando do que aconteceu”, lamenta.

Na segunda conversa com o Brasil de Fato, o jovem estava acompanhado da agora esposa Laíssa Carvalho da Silva Oliveira, de 17 anos. Os dois contaram que se casaram dois meses após o rompimento, mas a festa foi adiada em decorrência do luto vivido pelas pessoas próximas. “Eu queria casar na igreja, o Celso tem bastante família e eu também. Minha vontade era reunir todo mundo. Mas daí as coisas aconteceram e não teve como reunir, ninguém tava com clima. Por isso, a gente deixou pra lá”, recorda Laíssa.

 

Laíssa e Celso se casaram mas não conseguiram terminar a casa onde iriam morar antes do rompimento da barragem/ Foto: Guilherme Weimann

Demissão

Celso continuou recebendo salário da Brasanitas, empresa em que trabalhava antes do rompimento, até agosto de 2019, quando foi demitido. “A MRS mandou uma carta pra Brasanitas, exigindo que eles mandassem a gente embora. A advogada do sindicato está correndo atrás pra ver se consegue aquele processo dos três anos de estabilidade, mas está um pouco agarrado”, explica.

A demissão contraria o acordo definitivo de indenização, assinado no último dia 15 de julho de 2019, com o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais (MPT-MG), que determinou estabilidade aos trabalhadores próprios e terceirizados, lotados na Mina de Córrego do Feijão. Além disso, o acordo previu o depósito de R$ 400 milhões a título de dano moral coletivo, que foi pago aos atingidos em agosto do ano passado. 

Com a perda do antigo emprego, Celso se viu obrigado a procurar uma nova ocupação. Há dois meses, voltou a trabalhar na mineração, desta vez para a empresa MIB, como manobreiro em uma mina também em Córrego do Feijão.

Cidade vazia

Nos primeiros dias que se seguiram à tragédia, diversos jornalistas do Brasil e do exterior tomaram as ruas da comunidade de Córrego do Feijão. Celso e Laíssa, inclusive, acompanharam alguns em reportagens e acolheram outros em sua casa. Entretanto, com o passar das semanas, não apareceram mais. E não foram apenas os profissionais de imprensa que foram embora da comunidade. Laíssa conta que grande parte dos moradores já deixaram suas casas. 

“Quando aconteceu [o rompimento], muitas pessoas ainda continuaram aqui, por alguns meses. Só que depois foi um, dois... uns foram para casas alugadas, para pousadas... A tia do Celso foi embora há pouco tempo, a Conceição perdeu o marido dela. A nossa amiga Sirlene também foi”, relata.

Os lugares comuns, que antes se enchiam aos finais de semana, hoje estão todos vazios. “Quando a gente vai lá em cima, mesmo quando não está sol quente, a gente não encontra ninguém. A maioria foi embora ou fica dentro de casa. Não é como antes que a gente via a praça cheia. Até os bares que ficavam sempre cheios, agora não se vê mais”, rememora Laíssa.

Como já havia alertado outro atingido entrevistado pelo Brasil de Fato em fevereiro do ano passado, o problema realmente surgiu quando o silêncio chegou. “Esse mês minha sogra foi visitar umas amigas que moravam bastante longe e, quando ela voltou, ela me disse: ‘Laíssa, eu estou sentindo uma agonia muito grande’. Porque lá tem movimento, essas coisas, e aqui já não tem mais isso”, relata Laíssa. 

Animais abandonados

Com a saída massiva de moradores, muitos animais ficaram abandonados. Um deles foi a Soninho, gata que foi procurar abrigo na casa de Celso e Laíssa. 

“Nossa, teve um dia que chegou uma gata e a gente teve que arrumar alguém pra ficar com ela. Depois teve mais uma gata com gatinhos e a gente teve que pedir pro pessoal da Vale ajudar, porque a gente não podia ficar. Eles estão alugando as casas para as pessoas, estão possibilitando deixar as pessoas irem embora, mas elas estão indo e deixando os animais pra trás. Quando a gente entra nas ruas vê muitos cachorros que foram deixados pra trás”, descreve Laíssa. 

Preconceito

Os jovens narraram também situações críticas que estão vivenciando diariamente, em decorrência da discriminação de outros moradores que vivem no centro urbano de Brumadinho. Quando vão para a cidade, enfrentam diversos tipos xingamentos e ofensas. 

“As pessoas xingam a gente, chamam a gente de folgado, falam coisas que magoam. Às vezes eu sinto muita raiva. Acham que a gente aqui é privilegiado, sendo que não é assim. A gente aqui sofre mais que muitas pessoas. Todos os dias é só descer o morro pra ver tudo o que aconteceu, passar tudo na memória de novo. Mesmo assim, as pessoas julgam a gente”, lamenta Laíssa.

A situação se agravou ainda mais após o anúncio de Vale de cortar metade do valor oferecido no auxílio emergencial para os atingidos que moram fora da chamada “área quente”, que abrange Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira, Alberto Flores, Cantagalo e Pires. “Acham que a gente aqui é privilegiado, sendo que não é assim. A gente não tem culpa de morar perto”, opina Laíssa. 

 

Os jovens relatam que enfrentam diversos tipos xingamentos e ofensas. "Acham que a gente aqui é privilegiado, sendo que não é assim", desabafa Laíssa/ Foto: Guilherme Weimann

Futuro incerto

Celso conta ainda que é difícil continuar na mesma casa, sabendo que ao lado não estará seu primo e melhor amigo, Rodrigo Henrique de Oliveira, morto aos 28 anos quando trabalhava na mina. A saudade dos finais de semana, quando cantava violão não saem de sua memória: “outro dia mesmo eu falei com a minha mãe, que praticamente todo dia eu lembro do meu primo, cantando e tocando violão. Ele vinha visitar a minha tia, que mora aqui do lado, e ficava tocando violão. Ele alegrava os finais de semana da gente”.

Rodrigo trabalhava na mina quando houve o rompimento. “Meu primo está do lado direito do rapaz que aparece naquele vídeo cantando ‘Noites traiçoeiras’. É o moço barbudo, era ele”, recorda Celso, emocionado.

Por essas memórias, o futuro do casal e da festa de casamento adiada ainda estão incertos. Mas, provavelmente, não serão em Córrego do Feijão. “Vai ser difícil ficar aqui, fechou até a mercearia. Agora pra comprar qualquer coisa a gente tem que pegar ônibus pra ir até a cidade. É uma ferida que não vai sarar nunca”, afirma Laíssa.

Edição: Mariana Pitasse