A Constituição que aboliu formalmente a discriminação de castas na Índia completa 70 anos neste domingo (26), mas a violência contra integrantes de camadas consideradas inferiores persiste. O relatório mais recente da Anistia Internacional, publicado em 2018, afirma que são registrados mais de 100 crimes por dia no país com esta motivação.
O aniversário do texto constitucional, que marca o Dia da República na Índia, foi celebrado na capital Nova Delhi com um desfile militar. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) foi um dos convidados de honra da comemoração.
Origens
O sistema de castas vigora há mais de dois mil anos na Índia e é baseado em uma condição hereditária, passada de pai para filho. O casamento entre castas diferentes é proibido e a sociedade é dividida a partir da crença de que cada indivíduo se origina de uma parte diferente do deus Brahma, que é o criador do Universo segundo o hinduísmo, religião majoritária na Índia.
Os brâmanes teriam nascido da cabeça de Brahma; os xátrias, dos braços; os vaixás, das pernas; os sudras, dos pés; e os dalits, “sem casta”, teriam se originado da poeira sob os pés do criador. Essa condição destinaria cada pessoa a exercer uma função na sociedade – os brâmanes seriam sacerdotes ou intelectuais, enquanto que os dalits trabalhariam com lixo ou esgoto, por exemplo.
Avanços e limites
A Constituição de 1950 proibiu que os dalits fossem considerados impuros ou intocáveis pelos integrantes das demais castas, rompendo com uma tradição milenar de segregação. Ainda assim, são comuns os ataques de membros de castas superiores a dalits que tentam acessar templos e espaços públicos na Índia.
A economista Srujana Bodapati, coordenadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em Nova Delhi, lembra que a Constituição foi escrita dois anos após a independência indiana e é produto do interesse de diferentes setores: industriais, proprietários de terras, comerciantes e trabalhadores.
“As aspirações de milhões de massas trabalhadoras, mobilizadas contra os britânicos durante a luta pela liberdade, não podiam ser ignoradas. Esse reconhecimento se materializa em vários aspectos progressistas da Constituição indiana. Por exemplo, direito universal ao voto, abolição legal da discriminação e intocabilidade de castas, certos direitos dos trabalhadores para formar sindicatos e protestar”, enumera. Por isso, o feriado do Dia da República é tão comemorado no país.
Bodapati pondera que a Constituição não questiona as relações econômicas e de propriedade, ainda que considere o socialismo como um princípio orientador. “Os últimos 70 anos foram de luta para tornar os direitos constitucionais efetivos. Por exemplo, a Constituição prevê cotas para castas inferiores no serviço público, mas isso não é implementado como deveria”, analisa a pesquisadora. “Dentro dos limites da democracia liberal, o texto poderia ser aprimorado. Por exemplo, até hoje, o estupro conjugal não é reconhecido”, acrescenta.
“Embora a opressão de castas seja uma realidade, hoje certos segmentos oprimidos têm muito mais capacidade de vocalizar suas demandas, e alguns agora compartilham do poder do Estado”, completa Bodapati. Em 1997, a Índia elegeu um dalit, Kocheril Raman Narayanan, pela primeira vez como presidente. O atual primeiro-ministro Narendra Modi, anfitrião de Bolsonaro, também é oriundo de castas consideradas inferiores.
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Papel de Gandhi
Líder dos movimentos de independência, Mahatma Gandhi tem um papel controverso na elaboração do texto constitucional. Enquanto a ala liderada pelo jurista dalit Babasaheb Ambedkar se posicionou pela abolição completa do sistema de castas, Gandhi adotava uma postura intermediária, que prevaleceu na Constituição.
Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a antropóloga Mariana Faiad Batista Alves relata que, após perder aquela queda de braço, Ambedkar se dedicou a um trabalho de conversão em massa de dalits: do hinduísmo – religião que, segundo ele, os discriminava – para o budismo.
“As propostas de Ambedkar eram absurdamente progressistas para a época. Naquele movimento mundial de independência, ele foi o único que se colocou, por exemplo, em defesa dos direitos das mulheres. E a ideia dele que menos vingou na Constituição foi a reforma do sistema de castas”, acrescenta Alves. “São milênios de repressão. O sistema de castas nunca foi formalmente abolido, e muito em função da resistência que Gandhi impôs.”
A não-abolição faz com que, até hoje, existam vilarejos rurais compostos somente por dalits –segundo a pesquisadora, são justamente os territórios mais isolados, com maior dificuldade de acesso a água.
Bodapati, por outro lado, afirma que Gandhi tinha suas razões para não defender a abolição completa do sistema de castas. “Ele e o Partido do Congresso sabiam que isso significaria que a maioria dos hindus deixaria de apoiar o movimento de libertação da Índia”, lembra. “Além disso, a abolição levaria ao desmantelamento do sistema de propriedades e a distribuição de terras em todo o país. O Congresso era o partido dos grandes proprietários e capitalistas, e eles não queriam fazer isso”.
A economista indiana analisa que as ideias de Gandhi sobre as castas evoluíram nos anos seguintes. “Muitas de suas ações e palavras podem ser interpretadas como demonstrações de que seu apoio ao sistema de castas enfraqueceu ou até desapareceu. Ele casou todos os filhos com outras castas, o que é contra o sistema”, observa.
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Ameaças
Srujana Bodapati acrescenta que, apesar de todas as limitações da Constituição de 1950, a esquerda indiana tem se preocupado em defendê-la nos últimos anos, em vez de propor um novo texto. O motivo é o avanço da extrema direita no país, comandada pelo primeiro-ministro Narendra Modi.
Um dos ataques mais recentes à Constituição, segundo a pesquisadora, foi a emenda à Lei de Cidadania. Aprovada em dezembro de 2019, a emenda prevê a concessão de status de refugiados a minorias religiosas dos países vizinhos Afeganistão, Bangladesh e Paquistão. O texto, no entanto, não contempla cidadãos muçulmanos perseguidos nesses países, por isso foi interpretada como perseguição religiosa por parte dos nacionalistas hindus que lideram o atual governo. Hoje, os muçulmanos são 15% da população indiana. Hinduístas representam 80%.
“A Índia vive momentos de protesto e agitação contra a emenda à Lei de Cidadania. Essa mudança fere a Constituição indiana, que afirma claramente que todas as religiões são iguais”, finaliza Bodapati.
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Mariana Faiad Batista Alves concorda que o debate sobre o sistema de castas tem sido ofuscado pela repressão crescente aos muçulmanos no atual governo. A antropóloga enfatiza as consequências negativas da chamada Partilha, que dividiu o território indiano e resultou na criação do Paquistão em 1947.
“Milhões de pessoas foram dizimadas, e a violência entre hinduístas e muçulmanos só aumentou, porque nem todos os muçulmanos migraram da Índia. Alguns ficaram por razões financeiras, outros porque moravam ali há 700 anos”, lembra.
O sistema de castas nunca foi formalmente abolido, e muito em função da resistência que Gandhi impôs.
Quanto à violência entre castas, a tese de doutorado da antropóloga cita dados da própria polícia indiana ao afirmar que um crime cometido contra dalits por um não dalit é registrado a cada 16 minutos na Índia -- o que equivale a 90 por dia. O texto também informa que apenas 10% dos crimes dessa natureza são reportados à polícia, conforme análise realizada pela escritora e ativista Arundhati Roy.
“Geralmente, quando um dalit é agredido, ele apela à lei de proteção ao dalit, que está na Constituição. Hoje, crime against schedule caste [crime relacionado à casta] é um dos delitos com mais incidência no país”, observa. Alves relata que ainda hoje, na zona rural, são comuns os estupros de jovens dalits por homens de castas consideradas superiores. Como os vilarejos dalits estão localizados em regiões de difícil acesso, os crimes cometidos no interior do país raramente são notificados.
Bolsonaro na Índia
O presidente brasileiro está em Nova Delhi desde o dia 24 e já assinou 15 acordos bilaterais com o primeiro-ministro Narendra Modi. Bolsonaro retorna ao Brasil na próxima segunda-feira (27) após visitar o Taj Mahal, uma das sete maravilhas do mundo, na cidade de Agra.
Edição: Rodrigo Chagas