Coluna

O Direito de Resistência e a ordem democrática: desobedecer para defender 

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Chilenos exibem cartazes em referência aos projéteis que atingem os olhos dos manifestantes durante um protesto em dezembro
Chilenos exibem cartazes em referência aos projéteis que atingem os olhos dos manifestantes durante um protesto em dezembro - Martin Bernett / AFP
Circunstâncias conjunturais adversas sempre favoreceram a irresignação

Por Marília Lomanto Veloso*

Leis injustas existem: devemos contentar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até transformarmos ou transgredi-las desde logo?

Henri David Thoureau

Nenhum povo é capaz de entender sua história sem recuar ao passado, sem escavar suas estruturas, sem identificar os processos de contínua (re)construção de seu modo de capturar a realidade, contextualizar os fatos que (re)criaram esta realidade e transformar cada um destes episódios em uma nova forma de conquistar e garantir os direitos que a própria positivação de direitos lhe assegura.

O cristianismo já anunciava as linhas limítrofes da obediência do indivíduo ao Estado, pela simples razão de que se defrontava com “uma ordem superior divina”, definhava qualquer conciliação entre “a Igreja e o Estado, entre o Direito e a Moral”, em manifesta “resistência passiva”. Com essas reflexões, Ângela Soares de Araujo, (Evolução do Direito de Resistência na ordem constitucional) já defendia que “foi o cristianismo que opôs pela primeira vez o indivíduo ao Estado, a consciência à lei”. Jose Geraldo de Souza Junior, (Trabalho e cidadania: dignidade humana e projeto de vida) enxerga a resistência como “Experiência histórica da autonomia humana diante de toda forma de poder que o subordine”.

Circunstâncias conjunturais adversas sempre favoreceram a irresignação. As manifestações beligerantes eram e continuam sendo a réplica daqueles que sempre foram subjugados. A história da humanidade, em todas as suas instâncias temporais, sempre registrou um direito de resistência à opressão, às desigualdades, como forma de “contrapoder político”, opondo-se ao Estado como aparato repressivo ou por sua inoperância quanto às necessidades básicas dos povos.

É função do Estado “formular políticas que alcancem a massa humana, que façam a distribuição equânime da justiça social, que respeitem os preceitos constitucionais, sob pena de legitimar juridicamente a sociedade, os movimentos sociais a exercerem o direito de resistência”. Nesse sentido e na hipótese de truculência política e jurídica que experimenta o Brasil, com a eleição presidencial de duvidosa idoneidade e insuspeito embuste virtual, em explicito aviltamento à soberania popular, o cidadão teria o direito de resistir ao Estado para que se tornem eficazes os direitos fundamentais dispostos na Constituição de 1988.

A argumentação revolucionária de Henri David Thoureau atravessou os limites do tempo para dialogar com a contemporaneidade, onde o Direito de Resistência parece eclodir como categoria conectada à conjuntura onde se movem as questões sociais, políticas, econômicas, determinantes dos comportamentos humanos. Dentro desse viés, entender o direito que têm os indivíduos e povos a resistirem ao que violenta suas convicções e sua humanidade, significa adentrar no processo de reação justa e legítima às práticas que violam direitos.

Thoureau, a quem se deve a teorização do Direito de Resistência, da Desobediência Civil, cometida pelos povos que se recusam a ceder ao autoritarismo, à opressão, à exploração de sua força de trabalho, aos preconceitos étnicos, religiosos, políticos e de qualquer outro timbre que possam violar a natureza humana, importunava o sistema francês, provocando a insurgência dos súditos às leis injustas. Nem todas as condutas de insurreição e de resistência se comprimem nas cápsulas dos instrumentos legais, das ações jurídicas, dos mandados de segurança, dos habeas corpus. 

O acesso a instrumentos constitucionais de defesa de direitos é impossível para parcela significativa de nossos cidadãos. Por isso, as formas de luta escolhidas para resistirem aos abusos, terminam por confrontar paradigmas consolidados como referências de um conglomerado social acentuadamente asséptico, estanque, norteado por soluções arrancadas de alinhamentos teóricos arquitetados a partir de uma visão hegemônica que se instalou na contemporaneidade e decidiu querer perpetuar-se.

A conjuntura do Brasil subtraído de sua potencial consciência de avanço democrático se apresenta como um laboratório de exponencial latitude para florescerem ações de resistência ao desgoverno que sem o mais mínimo pudor político desconstrói as instituições republicanas, desfigura a imagem de um país que rumava para a demolição das desigualdades sociais, recua nas conquistas civilizatórias que reconhecem as diversidades, desobstruem os preconceitos, dignificam o pluralismo religioso, colocam nos espaços restritos a peles brancas e adereços platinados, corpos pretos, vivos e palpitantes que saltam aos patamares dos saberes antes navegados apenas pelas elites.

A eleição de 2018 para Presidência da República açoda a Desobediência Civil em sua plenitude, porque carrega para a história uma herança infectada pela deslealdade na disputa, na desigualdade de forças no campo virtual, por razões que o processo político e os procedimentos jurídicos parecem não ter dimensionado e que terminaram interferindo na normalidade democrática.

Para além da ausência de mecanismos de enfrentamento aos recursos tecnológicos do candidato que logrou êxito nas eleições e da cumplicidade da mídia subordinada ao poder seduzindo a opinião pública, o sistema de Justiça, (Poder Judiciário, Ministério Público) demonstrou tolerância com as ostensivas provocações de Jair Bolsonaro, omitindo-se na contenção dos discursos de insulto que assacava contra o povo negro, a comunidade LGBT+, indígenas, nordestinos, quilombolas, mulheres, classe trabalhadora, e silenciou diante das práticas de incitação pública ao uso de armas, ao banimento, prisão de seus opositores e mais grave, ao “fuzilamento” de contrários à sua sigla partidária.

Os precedentes do processo de disputa em 2018 ao mais alto cargo do país já eram claros na desconstrução do Pacto de 1988, na prática político-jurídica de uma nova Constituição sem debate popular, na sedução por um modelo de Estado autoritarista, criminalizante, distanciado do Estado Democrático de Direito. Um Estado midiático, conservador, onde a informação é manipulada e a violência transformada em espetáculo pela agências que têm por dever a defesa de direitos e de princípios que a Constituição inscreve. 

Por um lado, o mundo cortês reage ao Brasil patológico de Jair Bolsonaro, à manifestação de afago ao nazismo de seu serviçal na Cultura, ao vazio cultural de sua vassalagem. Por outro lado, causa espanto o silêncio, a não-resistência mais veemente da sociedade ao eleito na fraude virtual e sua “tropa” cada vez mais desafortunada, aos desastres políticos, à deselegância nas relações políticas, às posturas impertinentes, aos discursos “xulos”, à anorexia diplomática. 

Thamy Pogrebinschi (Emancipação política, direito de resistência e direitos humanos em Robespierre e Marx), fundamenta essa atitude política de liberdade e autonomia do cidadão, quando expressa que “A resistência opõe-se frontal e diametralmente à obrigação. É justamente a ausência ou o esgotamento do reconhecimento da autoridade política e da lei que desencadeia o direito de resistência”.

É preciso excitar o Direito de Resistência à truculenta, nociva e indigesta administração que infecta o País.  A eleição de 2018 é um marco para a afirmação do modo politicamente desleal, violento e juridicamente desprezível como o sistema de Justiça se conduziu. O processo político foi despido de suas vestes democráticas. A sociedade está conclamada a vesti-la com a força de sua militância.

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD e Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.


 


 


 

Edição: Leandro Melito