O fundamentalista hindu Nathuram Godse, de 37 anos, matou o advogado Mohandas Karamchand Gandhi, de 78 anos, com três tiros à queima-roupa em Nova Delhi. Talvez os jornalistas escolhessem essas palavras para abrir a notícia do dia, na seção policial, não fosse a vítima um dos homens mais influentes do século 20. Era 30 de janeiro de 1948 e o relógio ainda não havia batido as seis da tarde quando a cidade escureceu de repente. Horas depois, o mundo declarou luto: Mahatma Gandhi, líder da independência indiana, está morto.
Setenta e dois anos depois, o aniversário do falecimento do “pai da nação” não é feriado na Índia, embora seja considerado “dia seco” em três dos 29 estados do país – Maharashtra, Kerala e Rajastão. Nessas regiões está proibido comprar ou consumir bebidas alcoólicas nesta quinta-feira (30), em sinal de respeito. Nos demais estados, as comemorações são tímidas e isoladas.
Gandhi está mais perto de ser unanimidade fora da África do Sul e da Índia, territórios onde atuou em vida. Para entender essa controvérsia, o Brasil de Fato reuniu interpretações de diferentes pesquisadores. A variedade de olhares sobre a mesma trajetória demonstra que a obra do líder da independência indiana segue pertinente e inacabada.
Origens
Antes de se tornar Mahatma, que significa “grande alma”, Gandhi passou a infância e a juventude no estado de Gujarat, oeste da Índia, educado conforme os princípios do hinduísmo. Ao desembarcar em Londres, no Reino Unido, para estudar Direito, conheceu a obra do escritor russo Liev Tolstói, que se tornaria sua principal influência.
Uma nova migração, desta vez para a África do Sul, propiciou a Gandhi o primeiro contato direto com a política. Durante seis anos, participou de greves e protestos de mineiros indianos no país, consolidando-se como referência entre os trabalhadores. O aprendizado com os compatriotas na luta por direitos foi a semente das ideias que aplicaria no movimento independentista na Índia.
Não-violência
Biógrafos de Gandhi apontam que seu maior mérito foi congregar os interesses de hindus, muçulmanos, proprietários de terras e intelectuais filiados ao Partido do Congresso Indiano e jovens que vinham sendo massacrados em confrontos com militares a serviço do Reino Unido. Todos esses setores pareciam querer a Índia independente, mas a libertação só seria possível se atuassem na mesma frente de batalha, com uma estratégia comum.
Não-violência e desobediência civil tornaram-se as palavras-chave. Greves de fome e paralisações, as táticas de luta contra os impostos abusivos cobrados pelos britânicos. Em resumo: se as leis eram injustas e não faziam sentido, não havia razões para respeitá-las.
Por 24 dias, Gandhi comandou a “Marcha do Sal” e incentivou uma multidão de indianos a produzir seu próprio sal, o que era proibido pela metrópole. Em um pacto com o vice-rei da Índia, Lorde Irwin, em 1931, ele conseguiu derrubar a proibição e libertar os presos por participar da marcha.
Outra conquista do advogado pacifista foi estimular que milhares de indianos, antes forçados a comprar roupas feitas em indústrias britânicas, passassem a fabricar tecidos artesanalmente.
“Gandhi empreendeu uma luta de profundo sentido anti-colonial para enaltecer o trabalho na roda giratória, bem como para generalizar o ‘khadi’ (tecido rústico fiado à mão), o que fortaleceu a indústria de artesanato familiar do país”, explica o economista Óscar Useche. diretor do Instituto de Não-Violência e Ação Cidadã pela Paz (Innovapaz) em Bogotá, na Colômbia.
O girar da roda simbolizava unidade e resistência nos territórios. “Para Gandhi, a comunidade era o campo de relacionamentos por excelência para a não-violência”, completa o pesquisador. A mensagem era clara: a colônia podia sobreviver sem a metrópole.
Sistema de castas
Autores indianos contemporâneos, como a escritora e ativista Arundhati Roy, têm se dedicado a contrapor a narrativa predominante sobre o papel de Gandhi na independência. Para a autora de “O Deus das Pequenas Coisas”, enquanto a ala liderada pelo jurista Babasaheb Ambedkar se posicionava pela abolição completa do sistema de castas, Gandhi adotou uma postura intermediária, que prevaleceu na Constituição de 1950. Desde então, os dalits (indianos à margem do sistema de castas hinduísta) não podem mais ser tratados como impuros ou “intocáveis”, mas a divisão da sociedade segundo critérios hereditários persiste.
Um dos escritos mais citados de Gandhi, quando se trata de criticar sua visão sobre o sistema de castas, é The Ideal Banghi, de 1935. Nele, o autor afirma: “A tarefa de um brâmane [casta superior] é lidar com a limpeza da alma, enquanto os intocáveis devem se ocupar dos corpos” – os dalits eram responsáveis por trabalhos relacionados a lixo, esgoto ou cadáveres.
Fundadora da Associação Palas Athena e premiada pela Jamnalal Bajaj Foundation por contribuir na promoção dos valores gandhianos, a argentina Lia Diskin pondera que foi o próprio Gandhi quem insistiu para que Ambedkar se tornasse ministro da Justiça e presidente do Comitê de Redação da Constituição.
“Harijan, ou ‘um filho de Deus’, é o nome que Gandhi dava aos condenados durante séculos a viver fora dos limites das vilas e executar os trabalhos mais desprezados e indignos. Contrariando todos os costumes da sua época, Gandhi acolhia-os no seu ashram, onde tinham exatamente os mesmos direitos e obrigações dos demais membros”, analisa Diskin. “Desnecessário dizer as dificuldades que enfrentou para sustentar tal política de convivência, mesmo com os membros da sua própria família.”
Raça e gênero
Com base em textos escritos por Mahatma Gandhi em diferentes épocas, pesquisadores afirmam que o líder indiano propagou a discriminação racial e de gênero – ou, ao menos, que foi conivente com a segregação na África do Sul.
Segundo o livro The South African Gandhi (em português, “O Gandhi Sul-Africano”), assinado pelos professores sul-africanos Ashwin Desai e Goolam Vahed, o advogado pacifista chegou a declarar que os negros eram “selvagens, primitivos e dedicados a uma vida preguiçosa”. Em 1908, ele questionou por que os indianos eram obrigados dividir a prisão com negros, e não com brancos.
Em dezembro de 2018, uma estátua de Gandhi foi retirada do campus central da Universidade de Gana em Acra, capital do país africano, após estudantes alegarem que o líder indiano era racista.
Contrário à liberdade sexual e ao uso de métodos contraceptivos, Gandhi também é acusado de misoginia. Ele fez voto de castidade aos 36 anos sem entrar em comum acordo com a esposa, a qual tratava com desprezo, conforme relatos de pessoas próximas.
Filho de seu tempo
Para os admiradores do líder indiano, é preciso levar em conta a evolução da sociedade e do próprio pensamento político de Gandhi ao longo dos anos. O título que deu à sua autobiografia, “Minha vida e minhas experiências com a verdade”, expressaria essa disposição de aprender com os próprios erros e rever suas ideias em uma tentativa de aproximar-se do que chamou de “verdade”.
O mesmo se aplicaria ao debate sobre o sistema de castas, segundo a economista Srujana Bodapati, coordenadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em Nova Delhi. Em entrevista recente ao Brasil de Fato, ela afirmou que a postura Gandhi pode ter se transformado. “Muitas de suas ações e palavras podem ser interpretadas como demonstrações de que seu apoio ao sistema de castas enfraqueceu ou até desapareceu. Ele casou todos os filhos com outras castas, o que é contra o sistema”, analisou.
Herança em disputa
Após o assassinato, em 1948, as cinzas do líder da independência indiana foram jogadas no rio Ganges, cuja água é sagrada para os hindus. Nathuram Godse foi condenado e enforcado no ano seguinte, mas esse não foi o desfecho definitivo.
O Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), grupo paramilitar em que o assassino atuou durante anos, é uma das bases de sustentação do partido nacionalista hindu que governa a Índia desde 2014.
Embora não se posicionasse contra a Partilha, processo traumático que resultou na criação do Paquistão em 1947, Gandhi acreditava em uma convivência pacífica com os muçulmanos na Índia. Era justamente essa postura que irritava o RSS e que levou a seu assassinato – embora o governo indiano reivindique o legado de Gandhi e preste homenagens a ele.
“O governo e os grupos aliados tentam purgar os fatos sobre o assassinato de Gandhi. Eles querem um Gandhi despido de seu poder e força radical”, analisou a professora de estudos religiosos na Universidade de Yale, nos EUA, Supriya Gandhi, em conversa com o Brasil de Fato em janeiro. Bisneta do líder indiano, ela criticou a “distorção” e “apropriação” do legado de Mahatma pelo atual governo. Ela responsabiliza o atual primeiro-ministro Narendra Modi por estimular a violência e a discriminação contra muçulmanos por meio de emendas à Lei de Cidadania, o que tem causado protestos em todo o país.
“O Estado está respondendo a esses protestos com medidas repressivas”, ressaltou a professora indiana. “E esses atos de violência são praticados por quem admira a ideologia do assassino de Gandhi. Eles fazem parte de uma estratégia multifacetada para mostrar às minorias o seu lugar”.
A argentina Lia Diskin analisa os acontecimentos recentes sob outro ponto de vista. “Não acredito que se trate de uma ‘apropriação indevida’, mas de um reconhecimento tácito de que Gandhi realizou uma das experiências políticas mais profundas, substantivas e visionárias dos últimos séculos”, ressalta. “Na concepção dele, a verdadeira democracia só pode ser sustentada pela não violência, portanto nenhum regime totalitário – seja de esquerda ou de direita – encontrará em Gandhi alguma justificação”.
Nem todos os membros e ex-membros do RSS se comportam como Narendra Modi. Enquanto Gandhi é homenageado mundo afora, alas mais radicais do grupo paramilitar indiano utilizam páginas próprias nas redes sociais para manifestar ódio contra o líder da independência indiana. Em 2016, integrantes de outro partido de extrema direita, Hindu Mahasabha, instalaram um busto do assassino Nathuram Godse em um de seus escritórios em Meerut, a 70 km de Nova Delhi.
Entre os membros das castas oprimidas, a simpatia ao nome de Gandhi predomina, mas nada se compara à admiração que têm por Ambedkar. Morto em 1956, o “pai da Constituição” tem seu nome evocado nos protestos e seu rosto emoldurado nas paredes de vilarejos indianos até hoje.
Sem fronteiras
Polêmicas à parte, a não-violência como proposta de resistência anti-capitalista continua produzindo frutos.
O Innovapaz, instituto criado por Óscar Useche em Bogotá, serve como espaço de estudos e debates para aperfeiçoamento das condições do acordo entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), com base nas propostas de Gandhi.
Nos Estados Unidos, funciona o Centro Internacional para Conflitos Não-Violentos (CNIC), que trabalha para potencializar movimentos de resistência civil em todos os continentes. Desde 2002, a instituição promoveu cursos em mais de 100 países, distribuindo materiais com inspiração gandhiana em 70 idiomas.
Greves, ocupações de escolas, manifestações de rua. Se a Índia do século 21 carece de lideranças que apontem o caminho da paz, movimentos populares pelo mundo reproduzem a desobediência civil como caminho para garantir direitos e reafirmar sua liberdade. Conscientes ou não dos métodos de Gandhi, eles mantém acesa a chama da não-violência.
“Como veria Gandhi a situação de seu país hoje? Sem dúvidas, empreenderia mais uma vez seu caminho de busca da verdade e proclamaria de novo o espírito da ahimsa [não ferir os demais e assim, não machucar a si próprio]”, analisa Useche. “O fato é que muitos povos e milhões de pessoas fora da Índia acolheram seu legado e fazem com que o Mahatma reencarne, a cada momento, nos resistentes não-violentos pelo mundo”, finaliza.
Edição: Rodrigo Chagas