Onde Chávez repousa
No dia 6 de outubro, em Caracas, capital da Venezuela, chegamos às 16h20 no quartel 4F, conhecido como “Montanha”, que já estava para fechar os seus portões, porque exatamente às 16h25, todos os dias, jovens soldados e milicianos prestam homenagem neste local onde repousam os restos mortais de Hugo Chávez, tenente-coronel que governou a Venezuela entre 1999 e 2013, venceu três eleições e sofreu uma tentativa direta de golpe de Estado em 2002.
Nossa brigada de solidariedade com o país, composta por seis militantes de diferentes organizações políticas e movimentos populares – em tempos de bloqueio econômico e risco de uma intervenção ameaçada por Trump -, teve a sorte de acompanhar essa cerimônia, graças à compreensão de uma miliciana que cuida do espaço há 17 anos.
Sorriso no rosto, a velha senhora fez questão de nos acompanhar pelo quartel e pelo museu com a história do presidente.
Ali foi o meu único arrependimento da viagem: embora tenha anotado cada informação, nem sempre na correria tomei o nome das pessoas desse povo otimista e cálido.
Na mesma semana, o levante da população no Equador ganhava repercussão em todo o continente. Os canais públicos venezuelanos divulgavam na TV aberta por 24 horas o que acontecia naquele país, explicando os detalhes das manifestações, que seguiriam seguiriam no Chile, já aconteciam no Haiti, e marcariam as eleições de Uruguai, Argentina, além da resistência na Bolívia. Nossa América Latina está em chamas. Em meio ao questionamento do neoliberalismo em todo o continente, a Venezuela segue como experiência consolidada de alternativa este modelo.
Mesmo debaixo de uma chuva leve, jovens milicianos fizeram um disparo de pólvora dentro de um antigo canhão no quartel 4F. O horário se deve ao momento da morte de Chávez, em 2013. No texto do cerimonial, os militares reforçam o caráter do processo que resume os princípios da revolução desencadeada por ele: popular, socialista, anti-imperialista, bolivariana e chavista.
Por enquanto
Este local foi onde Chávez comandou, no dia 4 de fevereiro de 1992, a tentativa de insurreição contra o governo neoliberal de Carlos Andrés Pérez, golpe de Estado na época fracassado, mas que projetou como liderança nacional o jovem militar que andava com livros de Guevara entre as mãos.
Durante a estadia em Caracas, me perguntaram sobre o Brasil, eu disse que contribuía na Vigília Lula Livre, em Curitiba, e muita gente respondeu que também na época da prisão de Chávez, que durou dois anos, houve o acompanhamento diante do presídio. O estopim para a comoção popular foi a mensagem que Chávez negociou para entrar ao vivo em cadeia nacional de televisão e desmobilizar o movimento. Porém, a mensagem foi enfática:
– “Por enquanto, lamentavelmente, os objetivos que nos colocamos não conseguimos lograr”, diria, em cadeia nacional.
A capital pode ser vista do alto do bairro 23 de Enero, onde fica o quartel, na região muito conhecida pela organização popular, pelo combate em defesa de Chávez, contra o golpe de 2002, organizado por empresários do ramo petroleiro. Esta região de Caracas é marcada pelo apoio e participação da população local no processo bolivariano.
Momento diferente
Chovia. Como choveu no dia 4 de outubro de 2012, no último discurso de Chávez antes de ser debilitado pelo câncer, em episódio relembrado neste dia.
Era uma forma de iniciar a volta a um país onde eu estive em fevereiro de 2006, também no espaço pequeno de duas semanas, mas intenso de experiências. De lá para cá, o país passou do auge da entrada de renda petroleira até a crise no preço mundial que impactou o país.
Particularmente, notei nuances diferentes na fala das pessoas que encontramos. Se antes era comum ouvir o princípio de que havia recursos e, diante disso, o povo deveria se organizar, hoje muitas vezes o tom é de: “Devido às dificuldades, vamos nos organizar e produzir”.
Embora o país tenha passado por 25 eleições, entre plebiscitos e consultas à população, a mídia empresarial brasileira adotou a terminologia de “ditadura” para caracterizar a Venezuela. CBN, Band News, Globo e Folha não usam a mesma referência a regimes como a Arábia Saudita.
Muitos amigos perguntam, mas a ideia e o senso comum gerados pela mídia empresarial não batem com a realidade. Não há a situação de caos, pobreza, violência extrema tão anunciadas pela mídia. A situação do país é de relativa estabilidade, apesar dos fortes conflitos dos anos 2014 a 2018. Há lojas e mercados abertos. O abastecimento de alimentos se dá hoje pelos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap), rompendo o controle de alimentos e mercadorias exercidos pelo grupo Polar, que detém 60% da distribuição do país.
Boas livrarias oferecem livros baratíssimos e de qualidade de autores venezuelanos, latino-americanos, impressos pela fundação de arte do governo.
Entre os analistas com quem conversamos, prevalece a classificação do momento como o de uma guerra econômica contra o país. Apontam que a falta de produtos atingiu justamente aqueles mais importantes para a população:
“Essa guerra tem um nome e apelido, uma guerra também contra as mulheres, quando faltam anticoncepcionais, fraldas, leite. Agora temos o povo organizado dentro da concepção de poder de Chávez. Estamos resistindo, mas também dando batalha”, afirma o vice-ministro de Comunicação, Willian Castilho.
Em comum entre os períodos de 2006 e 2019, está a mesma conscientização típica de um processo marcado por agressões externas e por uma tentativa da oposição interna desestabilizar um país a partir de sua sociedade civil. Porém, os ataques violentos da oposição não foram capazes de alterar o sistema de poder.
– Como está a situação do país?
Um vendedor de frutas numa barraquinha na rua opina:
– Melhor.
– Melhor que antes?
– Sim, já passou o tempo da fome.
*Militante da organização Consulta Popular e coordenador do jornal Brasil de Fato Paraná. Essa série contém três reportagens e também foi publicada no site https://nocaute.blog.br/