O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC), por meio da Resolução 193/2019, proibiu a participação de médicos na realização de partos planejados fora do ambiente hospitalar. Publicada em Diário Oficial do Estado, na última quinta-feira (29), a resolução estabelece punição por infração ética ao profissional prestar assistência ao trabalho de parto, no nascimento e ao recém-nascido fora do ambiente hospitalar.
O CRM-SC argumenta que o objetivo é a redução da mortalidade de mães e bebês. A norma também afirma que é obrigatório que médicos assistentes, diretores técnicos e plantonistas de hospitais avisem o CRM-SC sobre atendimentos a complicações em pacientes que tiveram partos planejados fora do ambiente hospitalar.
Com opinião contrária, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP) elaborou nota onde avalia que o CRM-SC utiliza "argumentos de retórica, sem o apoio das melhores evidências científicas disponíveis" e se choca com princípios estabelecidos no Código de Ética Médica, ao "tolher a decisão profissional e de seus pacientes, para a realização do parto não hospitalar". De acordo com o coletivo de médicos populares, a normativa omite o fato de que "partos hospitalares não são isentos de erros médicos, iatrogenia e violência contra as mulheres".
A nota da Rede também refuta a alegação do ambiente hospitalar garantir a redução da mortalidade infantil, por meio de publicação de estudo realizado na cidade de Pelotas, onde a maior parte das mortes neonatais sugerem fatores associados ao pré-natal e não ao ambiente do parto.
"Os profissionais que oferecem a alternativa de parto fora do ambiente hospitalar são respaldados por estudos científicos robustos e atuais. Um estudo publicado pela revista The Lancet, em julho de 2019, realizou metanálise das principais bases de dados médicas entre os anos de 1996 e 2017. Os 14 estudos somaram aproximadamente 500 mil partos domiciliares nos mais diversos locais. Concluiu-se que não existe diferença estatística de mortalidade peri e neonatal entre partos de baixo risco realizados fora ou dentro dos hospitais", afirma o documento.
O documento destaca ainda que a resolução "inibe exercício legal da medicina", além de "restringir o acesso da população a práticas seguras e humanizadas de acompanhamento do pré-natal, parto e puerpério". Neste sentido, a Rede sugere que o Conselho Regional de Medicina "reveja sua posição e advogue para a construção de uma regulamentação específica para a realização segura de partos em ambientes não hospitalares".
E esclarecem: "não são todos os médicos que alinham-se com medidas que estão em desacordo com o compromisso de oferecer os melhores serviços de assistência à saúde da população".
Confira abaixo a íntegra da nota:
Posicionamento da Rede de Médicos e Médicas Populares em Saúde acerca da Resolução do CRM-SC nº 193/2019
A Rede de Médicos e Médicas Populares vem expressar seu posicionamento contrário à resolução do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC) nº 193 de 2019 que dispõe sobre a participação de médicos em partos planejados fora do ambiente hospitalar.
Esta resolução não atende aos preceitos básicos de ética, imparcialidade e respeito às práticas médicas de cuidado com as pessoas. Ao contrário, expressa interesses corporativos de reserva de mercado e manutenção de poder político e econômico de um grupo seleto de médicos.
Um primeiro ponto que deve ser considerado, é o parecer do Conselho Federal de Medicina, citado na resolução catarinense, o qual recomenda que partos sejam realizados preferencialmente em ambiente hospitalar, de forma a proporcionar mais segurança à mãe e ao bebê (Recomendação 001/2012 – fls. 381/384). Atuar preferencialmente, não institui a exclusividade por este ambiente.
O parto em ambiente fora do hospital é escolhido por um número cada vez maior de mulheres que buscam vivenciar seu parto em contextos mais humanizados, com práticas de cuidado individualizadas.
O Código de Ética Médica, conforme Resolução do CFM nº 2217, de 27 de setembro de 2018, em seus princípios fundamentais, estabelece:
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.
XVII – As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente.
XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
A resolução do CRM-SC choca-se com os Princípios Fundamentais supracitados ao tolher a decisão profissional e de seus pacientes, para a realização do parto não hospitalar.
As considerações da resolução citada omitiu o fato de que partos hospitalares não são isentos de erros médicos, iatrogenia e violência contra as mulheres. Em estudo realizado na cidade de Pelotas (Rev. Saúde Pública, vol. 42 n.1, São Paulo Feb. 2008, Epub Jan 08, 2008), a mortalidade neonatal intra-hospitalar foi de 12,4 por mil crianças nascidas vivas. O risco esteve fortemente influenciado pelo peso ao nascer, idade gestacional e variáveis socioeconômicas. A imaturidade foi responsável por 65% das mortes neonatais, seguida por anomalias congênitas, infecções e asfixia intraparto. Esses dados, obtidos em partos realizados em ambiente hospitalar, apontam que mesmo em condições protegidas, existem desfechos negativos, bem como situações em que o pré-natal seria fundamental para prever a melhor opção de cuidado.
Os profissionais que oferecem a alternativa de parto fora do ambiente hospitalar são respaldados por estudos científicos robustos e atuais. Um estudo publicado pela revista The Lancet, em julho de 2019, realizou metanálise das principais bases de dados médicas entre os anos de 1996 e 2017. Os 14 estudos somaram aproximadamente 500 mil partos domiciliares nos mais diversos locais. Concluiu-se que não existe diferença estatística de mortalidade peri e neonatal entre partos de baixo risco realizados fora ou dentro dos hospitais.
A segurança para a realização de partos em ambientes não hospitalares é estabelecida ao longo do acompanhamento pré-natal. O parto em ambiente não hospitalar é opção apenas para pacientes que durante o pré-natal, não apresentaram nenhuma condição clínica associada com complicações tanto para a saúde da mãe quanto da criança. Este modelo de assistência não é antagônica ao modelo de assistência prestado em ambiente hospitalar. Durante todo o trabalho de parto, a evolução e avaliação de risco é realizada com as mesmas ferramentas diagnósticas utilizadas em ambiente hospitalar. O parâmetro de avaliação clínica é o mesmo, e, ao aparecerem sinais ou sintomas que possam sugerir risco à mãe ou bebê, a transferência imediata para ambiente hospitalar é indicada. A integração entre os dois sistemas é fundamental para a realização de partos seguros. O parto em ambiente não hospitalar é seguro justamente por contar com a estrutura hospitalar em caso de necessidade.
Em processo similar, apresentado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, em 2012, a 2ª vara Federal do Rio de Janeiro, em setembro de 2014, julga procedente o fato de que ao Conselho Regional de Medicina não cabe vedar a participação do médico em planejamento e assistência ao parto fora do ambiente hospitalar, visto que sua presença é necessária para garantia de segurança à gestante e ao neonato.
A resolução do CRM-SC inibe o exercício legal da medicina, atentando contra o direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XIII, da Constituição, a par de obstruir a consecução de seu próprio mister, agindo contraditoriamente: se visa assegurar situação de menor risco possível e se não tem competência para impedir a realização de partos em ambientes fora do hospital, impedir que médicos acompanhem o evento significa admitir que a gestante e a criança fiquem entregues à própria sorte em caso de alguma intercorrência. Demais, prevê o diploma, em seu art. 2º, que o objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo.
A edição da Lei nº 12.842/2013, que regula o exercício da medicina, agrava a ilicitude residente na Resolução nº 193/2019 do CRM-SC, já que não estabelece qualquer tipo de óbice à atuação do médico no acompanhamento e atendimento a atividades de pré-natal e parto domiciliar com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.
Dessa forma, ao CRM-SC não cabe tolher a decisão profissional criando a insubsistente situação de “infração ética passível de competente processo disciplinar” em caso de descumprimento da abusiva determinação. O CRM-SC usou de argumentos de retórica, sem o apoio das melhores evidências científicas disponíveis.
Consideramos inadequada a atual postura do CRM-SC, ao tentar restringir o acesso da população a práticas seguras e humanizadas de acompanhamento do pré-natal, parto e puerpério. Sugerimos que o Conselho Regional de Medicina reveja sua posição e advogue para a construção de uma regulamentação específica para a realização segura de partos em ambientes não hospitalares.
Pelas considerações acima expostas, esclarecemos à sociedade que não são todos os médicos que alinham-se com medidas que estão em desacordo com o compromisso de oferecer os melhores serviços de assistência à saúde da população. Estamos juntos aos profissionais que acreditam no trabalho multiprofissional e na decisão compartilhada com as mulheres sobre a melhor opção para um parto seguro e em ambiente acolhedor.
02/09/2019
Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares
Artigo original publicado em Saúde Popular.