Misoginia

Artigo | Por que precisamos falar de BBB?

Uma novidade desta edição é a presença de uma arquitetura do machismo agindo racional e explicitamente contra mulheres

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
big brother
Um elemento positivo nesse contexto de assédio tem sido a reação dos telespectadores e as denúncias feitas pelas redes sociais - Reprodução/TV Globo

Longe de querer aumentar ainda mais a audiência de um programa que tem garantido sua permanência na televisão brasileira há 20 anos, não podemos nos furtar de debater com a sociedade a responsabilidade do Big Brother Brasil na naturalização da misoginia patriarcal que objetifica e violenta o corpo das mulheres.

Não é a primeira vez que o reality show é alvo de polêmicas que envolvem violência e machismo. Há, pelo menos, uns cinco outros casos de assédio, estupro e racismo registrados na casa em edições anteriores. Desta vez, o programa mal começou e já teve que lidar com três situações de assédio praticadas pelo ginasta Petrix Barbosa contra duas participantes.

Numa nítida postura de omissão, a emissora não só não tomou as medidas legais para lidar com as ocorrências, como tentou jogar a situação pra debaixo do tapete, promovendo um interrogatório constrangedor com a vítima, no dia seguinte ao ocorrido, que acabou por inocentar o agressor e, assim, forneceu os elementos que o programa necessitava para mantê-lo na casa.

Imediatamente, os debates sobre assédio versus consentimento tomaram conta das redes sociais e, no paredão seguinte, Petrix é eliminado com 80% dos votos. É assustador a superficialidade com que a opinião pública lida com a situação, detendo-se apenas à dimensão do assédio em si e não problematizando as causas dessa violência e o porquê de a Rede Globo seguir apostando na misoginia como ingrediente do seu “show”.

É importante frisar que esse tipo de comportamento agressor não é algo isolado na “casa dos brothers”, mas faz parte do modus operandi como o qual os homens constroem seu poder e seus privilégios na sociedade. É a existência de uma relação de dominação patriarcal que dá a eles direitos sexuais sobre as mulheres praticamente sem exceções.

Célia Amorós, uma importante teórica feminista, nos diz que o patriarcado atua como um conjunto de “pactos” construído pelos homens a partir de práticas reais e simbólicas que os constituem como uma identidade coletiva masculina. Nesse sentido, a misoginia patriarcal normatiza a ideia de que qualquer homem que está dentro desse “pacto implícito” tem o direito de usufruto sobre qualquer mulher “não santa” e, por sua vez, a mulher torna-se um território adjudicado aos homens, sempre disponível sexualmente para todos.

Assim, não é de se estranhar a existência explícita (e verbalizada) de um coletivo composto por cinco homens dentro da casa (todos brancos e héteros) cujo objetivo é assediar mulheres como forma de demonstrar que são capazes desmoralizá-las ou colocá-las em apuros. Ou seja, essa é uma ação organizada coletivamente e, por isso, os casos de assédio não podem ser vistos como fruto de uma atitude isolada ou de um desvio de comportamento machista. Essa estratégia fez da Bianca Andrade e da Flayslane suas primeiras vítimas e, mesmo com a saída do líder, parece que seguirá adiante, uma vez que os posicionamentos machistas continuam dando o tom no discurso deles.

Que a misoginia sempre esteve presente no Big Brother Brasil é uma verdade, porém, o que parece ser uma novidade nessa edição é a presença de uma arquitetura do machismo agindo racional e explicitamente como instrumento para que os homens ganhem a competição.

No entanto, um elemento positivo nesse contexto tem sido a reação dos telespectadores e as denúncias feitas pelas redes sociais. Talvez, se não fosse a repercussão negativa do caso, provavelmente o agressor ainda estaria na casa. Isso também gerou um debate por parte das mulheres confinadas que têm repudiado a ação dos colegas e demonstrado que não recuarão frente aos seus algozes.

Embora estejamos em uma conjuntura conservadora e de retrocesso das liberdades, esse episódio protagonizado pelo BBB 20 demonstra que ainda existe uma visão crítica na sociedade, oriunda das conquistas adquiridas com a luta das mulheres desde a década de 1970. Tais conquistas colocaram as mulheres em um outro patamar, mais favorável aos enfrentamentos e dificilmente aceitaremos uma o retrocesso a uma cultura da violência e de cerceamento da nossa voz.

*Elaine Bezerra é jornalista e pesquisadora da área de gênero.

Edição: Rodrigo Chagas