No centro de Fortaleza (CE), uma biblioteca reúne 201 edições do Manifesto do Partido Comunista em vários idiomas, formatos e edições diferentes. É possível encontrar o manifesto em versões ilustradas, quadrinhos e até cordel na biblioteca social Plebeu Gabinete de Leoitura, que abriga essa coleção funciona na sede da Associação Cearense de Imprensa (ACI).
"A ideia aqui não é o acúmulo. A ideia é de demonstrar como um livro vai adquirindo camadas de significados e de sentidos ao longo de muito mais de 150 anos, desde a sua publicação", explica idealizadora da biblioteca, Adelaide Gonçalves, professora do departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O Brasil de Fato visitou o acervo da biblioteca, formado ao logo dos anos em viagens pela América Latina e Europa. De uma viagem para Bogotá, vieram oito edições diferentes na bagagem. "Não havia me preparado para fazer essa pesca, eles foram aparecendo nas livrarias. É como se um livro chamasse o outro", conta Gonçalves.
A historiadora responsável pelo acervo explica porque considera como um texto seminal de tradição política o manifesto escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, publicado pela primeira vez em 21 de fevereiro de 1848. "Um manifesto interpela, convoca, ajuda a contar a história de modo conciso, de modo sucinto. Reúne em tópicos, portanto, uma espécie de caminhada sobre uma determinada passagem da história", ressalta.
.Brasil de Fato: Como começou sua coleção do Manifesto Comunista?
Adelaide Gonçalves: A prática do colecionismo é uma prática que pode não ser boa. O colecionismo, em alguns, julgo que pode ser um sinal de avareza, acumulação individual, uma caça ao tesouro que está em vários lugares e que agora estará em mãos de um particular.
A prática que temos aqui nessa biblioteca social, que por razões diversas chega a alguma semelhança com o colecionismo, resulta de outros interesses. Você vai encontrar, por exemplo, algumas edições de A Mãe, do Gorki, em várias línguas e edições, algumas porque tem uma capa magnífica, outras porque são coleções muito modestas e que certamente foram realizadas por grupos editoriais de pouquíssimos recursos.
Esse é um exemplo de que, em uma biblioteca social, é como se um livro chamasse outro, um livro convocasse outro. Outros livros aqui dentro dessa biblioteca também existem em mais de uma edição e deles não nos desfazemos porque, por vezes, uma edição tem um prefácio, tem um posfácio, tem uma anotação singular, tem uma capa ou alguma especificidade editorial.
Para o caso do Manifesto Comunista, a questão já é outra. Em primeiro lugar deve-se destacar o próprio conceito de manifesto, a própria escrita como proclamação. O ato de escrever não corresponde aí a investigadores que estão entregando uma pesquisa ou que estão dando a conhecer sua assertiva sobre um determinado tema. A escrita em manifesto corresponde a uma proclamação. Um manifesto deseja ser um ato, por vezes inaugural de uma tradição, uma convocação àqueles e aquelas que se sentirem alcançados, tocados por aquela escrita. Um manifesto interpela, convoca, ajuda a contar a história de modo conciso, de modo sucinto. Reúne em tópicos, portanto, uma espécie de caminhada sobre uma determinada passagem da história.
Por razões consabidas, nós estamos diante de duas figuras magnas do movimento comunista em escala mundial, estamos diante de Karl Marx e Friedrich Engels. Eles não foram, apenas, uma dupla que escrevia magnificamente e que se dedicou a pensar sobre os grandes temas do seu tempo. Nós estamos aqui diante de um par e de uma das histórias mais bonitas da amizade intelectual entre os comunistas. Uma amizade que se traduziu na escrita de obras magnas que chegam ao nosso tempo.
O Manifesto Comunista é escrito por essa dupla, nesses momentos agudos em que eles e elas acalentavam como desejo, esperança e utopia aquela certeza de uma história em aberto e que, outra vez, o mundo estava dobrando uma esquina. A escrita do Manifesto Comunista se cerca dessas singularidades e tem propósitos seminais. É um manifesto, não é um livro. Singularíssima para uma coleção em bibliotecas de pendor socialista e de característica marcadamente da leitura social é o fato de ter virado livro, presente em todas as bibliotecas da tradição do marxismo revolucionário, de todas as correntes do socialismo.
O Manifesto Comunista, tornado livro, é um objeto tornado testemunho. Aqui, nessa biblioteca social, nós nunca paramos e dissemos, “nós vamos criar uma coleção do Manifesto Comunista”, isso é que é singular em uma história das bibliotecas. Começamos a andar nos sebos, nos alfarrabistas, a observar nas lindas livrarias da América Latina ou da Europa e nos encontrávamos com belas edições do Manifesto.
A nossa emoção sempre tratou de não ser contida. Por vezes, aconteciam casos muito pitorescos, algumas edições eram muito caras, porque o papel era de qualidade superior, a capa era em um tecido mais caro. Naquele dia nós sabíamos que estava certamente prejudicado o dinheiro do almoço ou do jantar, mas aquela edição ia conosco para o Plebeu Gabinete de Leitura, em Fortaleza.
Uma vez, fui a Bogotá. Essas viagens são sempre com o propósito de tentar conhecer as pegadas daqueles e daquelas que foram grandes nomes das letras na América Latina e em outros lugares. Então, nessa viagem para Bogotá fui em busca das pegadas, dos vestígios, das palavras de Gabriel García Marquez. Dessa viagem a Bogotá e outras duas cidades colombianas, eu trouxe oito edições do Manifesto Comunista. Não havia me preparado para fazer essa pesca, eles foram aparecendo nas livrarias. É como se um livro chamasse o outro.
BdF: Você poderia destacar alguns detalhes dessas edições do acervo do Plebeu Gabinete de Leitura?
Adelaide: São 201 edições e eu já até almejo que aqueles e aquelas que se interessem por essa história e que tenham o mesmo zelo que nós estamos tendo, nos presenteie. Quem sabe no próximo ano teremos 300 edições do Manifesto Comunista. Insisto que a ideia aqui não é o acúmulo. A ideia aqui é de demonstrar como um livro vai adquirindo camadas de significados e de sentidos ao longo de muito mais de 150 anos, desde a sua publicação.
O que quero dizer, com isso, é que aqui temos a edição fac-similar da primeira edição em língua alemã. Aqui nós temos edições que vão adquirindo enorme valor heurístico com belíssimos prefácios da lavra de grandes pesquisadores. Cito, por exemplo, Eric Hobsbawn, Domenico Losurdo, David Harvey, poderia citar pelo menos mais 30.
Temos posfácios, estudos introdutórios, estudos de recepção do marxismo por meio da leitura do Manifesto Comunista. Entretanto, outras edições vão se revelando preciosas de um ponto de vista da pesquisa histórica. Algumas edições, para o caso de Portugal sob o tacão do fascismo de Salazar, da Espanha sob o tacão do fascismo de Franco, do Chile sob Pinochet, são edições que não tem a editora, quero crer que são edições clandestinas que ousaram sair do silêncio imposto pelas ditaduras e pelo fascismo e circularam clandestinamente. A do Chile, por exemplo, foi-nos presenteada por um destacado militante chileno.
Outras edições são brochuras tão modestas na sua impressão que indiciam a falta de condições materiais daqueles grupos editores. Por outra, não apenas a falta de condições materiais, mas a urgência da difusão e da leitura do Manifesto Comunista. Temos vários exemplos de brochuras, que não estão na forma livro modestamente feitas, mas impecavelmente impressas no seu conjunto e com os prefácios originais dos seus autores.
Temos, também, algumas edições que estão anotadas às margens indiciando que aquele leitor encontrou tantas palavras que interpelaram a sua leitura e quiçá a sua consciência histórica. Essas anotações podem nos indicar como o manifesto terá sido um dos livros das pequenas bibliotecas militantes, alguns certamente estiveram em algumas pequenas estantes de salões operários e que adquiríamos em alfarrabistas porque muitos desses salões operários, alvos da repressão policial, tiveram seus livros confiscados e, em muitos casos, essas delegacias da polícia política jogavam fora esses materiais.
Aqui também está um esforço da imaginação da pesquisadora quando encontra determinados exemplares. Temos aqui alguns manifestos em capa dura, em papel do melhor, em capas muito bonitas. Temos aqui um comprado em uma feirinha em Havana, Cuba, e havia uma banca que vendia livrinhos e brochuras, várias de José Martí, alguma coisa de Che Guevara e eu trouxe de lá uma edição do Manifesto Comunista que conservo tal e qual trazido daquela feira com uma capa muito singela de papel de presente e por cima um plástico como para proteger aquele livrinho das intempéries de vários tipos que alcançam um livro.
Não sei porque um leitor tão cuidadoso depois destinará a sua edição a uma feirinha de rua, quiçá algum familiar, ou ele já se tenha ido, tenho certeza que quem pôs uma capinha daquele tipo era um leitor extremamente amoroso e cuidadoso.
Temos também que falar nesse universo muito vasto e muito rico da história editorial que temos aqui cinco edições em quadrinhos, ensejando já alcançar um novo leitor cuja imaginação pede figuras e uma escrita em movimento. Temos algumas edições com gravuras absolutamente belas, que tornam a edição preciosa formando camadas de leitura. Estamos falando do Nordeste do Brasil, aqui temos três edições muito bem cuidadas do Manifesto Comunista em verso de cordel, com a possibilidade de alcançar novos leitores e já se fazem acompanhar da xilogravura. Não se trata de uma adaptação, se trata de uma criação.
BdF: O acervo possui edições do Manifesto Comunista em quais idiomas?
Adelaide: Nós temos aqui 201 edições, a coleção ocupa uma estante específica, já é a sua terceira estante e tenho certeza que daqui a um ano, em janeiro de 2021, já vamos estar em uma estante maior porque vamos receber de presente novas edições. E, por falar em presente, é preciso dizer que uma biblioteca social só cumpre esta sua tarefa se ela é alvo da generosidade de companheiros e companheiras de jornada de lutas, de leituras em comum, de horizontes de utopia em comum, logo várias edições do manifesto resultam da generosidade do olhar amoroso de muitas pessoas a essa coleção.
Alguns companheiros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil que sabem da coleção, que já estiveram aqui no Plebeu Gabinete de Leitura, de vez em quando me surpreendem trazendo de presente um manifesto em língua francesa ou em língua italiana quando vão para algum congresso, alguma reunião da Via Campesina ou de outras entidades da solidariedade internacional e da luta social anticapitalista.
Quero fazer aqui uma menção particular a João Pedro Stédile, algumas edições eu sinalizei como presentes de João Pedro, outras estão dedicadas a João Pedro Stédile e ele de forma muito generosa acolheu o presente lá na origem e imediatamente passou à nossa coleção. São edições vindas de África ou vindas de outros lugares, que não convém declinar os lugares para que também não se fique entregando o lugar dessas viagens da luta social.
De modo que, nós temos o maior número de edições do mundo hispano-falante, o que quer significar o óbvio: é um mundo de grande tradição editorial, temos edições dos países da América Latina, como também da Espanha. De Madri, temos uma edição que foi adquirida numa das mais bonitas livrarias por onde andei chamada Traficantes da Utopia.
São 58 edições do mundo hispano-falante. Temos edições vindas de Barcelona que são em catalão, temos edições que vem de Bilbao que são na língua basca. Em seguida, as edições do mundo da língua portuguesa, para o caso do Brasil, temos 57 edições. De Portugal, 19 edições. Temos edições em inglês, francês, alemão, italiano, grego, japonês, mandarim, esperanto, húngaro, árabe, polonês, holandês, dinamarquês, russo, nas mais diversas línguas.
BdF: Qual o impacto que o Manifesto Comunista teve em sua vida e sua formação?
Adelaide: Impressiona ao leitor a qualidade da escrita feita sobre esse pequeno livro. Impressiona como se pode dizer tanta coisa sobre essas poucas páginas. Eu li o Manifesto Comunista, uma primeira e aligeirada leitura, ainda como estudante secundarista. Aquele pequeno texto me foi emprestado por um professor de geografia que tinha uma clara simpatia aos ideais comunistas. Depois, logo ao entrar na universidade, eu li duplamente o Manifesto Comunista, tive a grande sorte de fazer a leitura dele por dentro de uma disciplina de teoria sociológica quando lemos um livrinho de introdução ao marxismo de Ernest Mandel e fizemos a leitura do Manifesto Comunista, e fiz outra leitura em círculos militantes.
Já não sei quantas vezes eu própria li esse texto. Leio para revisão, quando vamos fazer alguma edição militante. Uma vez, por dentro de uma atividade do Brasil de Fato, em Fortaleza, fizemos em uma página tamanho A1, o manifesto integralmente impresso nessa página. Já li por vários motivos dentro dos círculos de leitura no MST, nas Escolas do Campo, em momentos de formação. O Manifesto, a partir da minha leitura, já participou de algumas exposições como uma presença inaugural e, certamente, já usamos tantas vezes frases que saem do manifesto.
Algumas frases saíram do manifesto e adquiriram vida própria, deram títulos a alguns livros de historiadores, alguns belos livros de ensaios de grandes intelectuais, assim como de textos de feitio. Certamente, uma pesquisadora como eu poderá aquilatar que a palavra que saltou no Manifesto Comunista com tal força é “Proletários de todo o mundo, uni-vos!!!”.
Conta-se aos milhares as vezes que essa frase foi impressa em jornais operários de tradições várias, em todos os países onde encontramos a imprensa operária desde o século XIX, cumprindo a sua função aglutinadora e de reverberação do desejo de libertação dos trabalhadores pelo conhecimento e pela apropriação da palavra.
BdF: No próximo dia 21 de fevereiro, um conjunto de movimentos e organizações populares vão realizar uma atividade em plano internacional chamada “livros vermelhos”, que convoca para a leitura do Manifesto Comunista em vários lugares. Diante de uma ação que celebra a leitura e os livros, gostaria que você falasse um pouco sobre o sentido dos livros nesse intuito de transformação social.
Adelaide: Quando soube desse Dia do Livro Vermelho, fiquei muito encantada. É uma belíssima iniciativa de ler em voz alta o Manifesto Comunista. Aqui no Plebeu nós vamos fazer esse dia de leitura no dia 21 de fevereiro, estou convidando algumas pessoas para fazermos um leitura internacionalista, em várias línguas.
Sobre os livros, é preciso que sejamos bem entendidos e que não pese sobre nós qualquer ideia de que estamos afastando do nosso convívio aqueles que não têm acesso ao livro e à leitura da palavra escrita, aqueles que se comunicam por outras formas.
Vamos entender livro aqui numa acepção muito aberta. Queremos falar de leituras múltiplas, daqueles que nos ensinaram a ler olhando as estrelas, que nos ensinaram as estações olhando o movimento das marés, que sabem a hora do plantio e da colheita porque sabem ler os sinais da natureza, porque respeitam a natureza. Mas, também, fazemos na nossa trajetória um elogio continuado ao mundo dos livros e ao mundo das bibliotecas. Entendemos que é um patrimônio dessa humanidade que resolveu se escrever em prosa, verso, ilustrando o pensamento nas mais diversas formas.
Penso que, neste ano de 2020, a nossa tarefa se amplia no Brasil. Estamos desde 2016 atravessando uma conjuntura de grande perigo para o pensamento, para o livro. Certas tentativas, enquanto veladas de censura, agora já não são mais veladas e são declarações públicas e a partir do Estado brasileiro relativo a censura.
O capitão fascista [Jair Bolsonaro], que dirige o Estado brasileiro, diz que a Secretaria da Cultura não deve apoiar iniciativas da produção intelectual feita por, ou dirigida por/ao grande universo de lésbicas, gays, transexuais, transgêneros, a esse larguíssimo universo. Estou falando de uma entre as várias ameaças que pendem sobre nós.
Assistimos, há alguns dias, dito pelo Ministro da Educação que, para o próximo período, outros serão os conteúdos dos livros a serem distribuídos nas escolas públicas. Há pouco, o fascista na Presidência reclamava de livros com muitas letras, uma condenação dos livros como aqueles que devem ser retirados do convívio da juventude e da cidadania. Os livros, eles sabem, nos ensinam a pensar, nos interpelam e ajudam. Um autor sabe que o livro depois que está na mão do leitor, o livro já tem um outro autor, as autorias vão sendo aos milhares.
Também por isso ficamos felizes com o Dia do Livro Vermelho, que honra nossos escritores e escritoras de todos os matizes, feitios e latitudes. Em vermelho porque esta foi a tinta com que fizeram a sua escrita. Em vermelho porque tem o sangue vivificador dessa escrita que há de se multiplicar, que há de prosperar.
*Doações de exemplares do Manifesto Comunista podem ser enviadas para Rua Tibúrcio Cavalcante, 187, ap.202 - Fortaleza (CE), em nome de Adelaide Gonçalves
Fonte: BdF Ceará
Edição: Leandro Melito e Marcos Barbosa