Da lama à arte

Feito com lama de Brumadinho, mural em SP homenageia trabalhadores mortos

O painel do artista Mundano é uma releitura da obra Operários, de 1933, de Tarsila do Amaral

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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São 22 rostos feitos a partir da lama tóxica - Reprodução

São 270 pessoas mortas: 259 corpos identificados e 11 desaparecidos. Mais de 100 pessoas que ficaram sem um teto. Na memória, a fotografia amarelada de uma cidade sobrevivente e de um rio morto. A prova do crime é a lama tóxica que beira o Córrego do Feijão e o Rio Paraopeba, e que hoje está tatuada na parede de 800 metros quadrados do Edifício Minerasil, no centro de São Paulo.

Uma releitura da obra Operários, de 1933, de Tarsila do Amaral, o painel do artista Mundano, de 34 anos, é mais do que uma homenagem aos trabalhadores de Brumadinho, é um grito de lembrança: Brumadinho aconteceu. “Quem aqui lembra de Mariana e Brumadinho? É um jeito de tatuar um prédio, o concreto, no meio do centro de São Paulo, esse centro financeiro, para mostrar e todo mundo lembrar que a mineração tem custo.”, diz o artista.

São 22 rostos pintados com tinta à base da lama – de 250 quilos de terra foram feitos 270 de tinta. Nos olhos, o cansaço de quem busca cotidianamente a esperança pela Justiça, assim como os operários de Tarsila do Amaral, que carregam as olheiras da industrialização da década de 1930.

Na parte de baixo está o capacete com o símbolo da mineradora Vale S.A. Um pouco mais acima, um único rosto segura um olhar firme e um megafone na mão direita. Acima de todos, mostra-se a mineradora, impune,  pesando sobre os trabalhadores e cercada de poluição, refletida em um céu amarelado.

Assista ao vídeo do Brasil de Fato sobre o painel de Mudano

Antes disso, Mundano já havia entrado em contato com a lama. Quando aconteceu Brumadinho, o artista sentiu que precisava ir até o local. “Fui no protesto de um mês depois do crime em Brumadinho marchar ao lado dos atingidos, senti a dor, fui ter o contato com a lama tóxica, entender isso, e eu acabei trazendo amostras onze meses atrás”, lembra. 

“Tem a coisa dos imigrantes. É uma chinesa que um dia eu olhei ali e pensei que tinha que ter. Tem uma ali com um tecido árabe. A proporção de homem e mulher, óbvio, reflete o mercado de trabalho. Por mais que eu quisesse mostrar a equidade total, não tem equidade. Então as mulheres estão mais às beiradas. Tem mais homem no meio", aponta. Mundano enfatiza que 87 anos depois, o mesmo olhar ainda reina: o de trabalhadores cansados e explorados, e o capital acima de qualquer interesse. 

Releituras Mundanas

Para concretizar o painel, o artista fez duas expedições à Brumadinho. Em uma delas, durante um protesto contra a mineradora, sobreviventes e outros atingidos colocaram 270 fotos lado a lado de pessoas que foram mortas no crime ambiental. “Em cima, estava escrito ‘Vale assassina’, o que, para mim, foi muito forte. Foi quando eu legitimei a minha escolha [pela releitura de Operários], porque é a mesma repetição de faces, e lá em cima você tem a indústria”, afirma o artista. 

Das amostras surgiu a sua série de obras Releituras Mundanas: do Abaporu da Tarsila, nasceu o Abaporuopeba, também com lama e megafone; do Mestiço de Cândido Portinari, saiu o Mestiço do Vale do Paraopeba, com lama e megafone; e, por último, uma versão de Brumadinho em cima de Guernica, de Pablo Picasso.

“Interessante é que Guernica, que é uma tragédia humana por conta de uma guerra, tem o mesmo número aproximado de vítimas, que são 300, e as mesmas cenas. Se você olhar a obra de Guernica, tem um cavalo ali sofrendo, um boi, animais, pessoas, a mãe chorando o filho, e eu vi essas mesmas coisas em Brumadinho", ressalta.

Esses trabalhos foram os passos que Mundano precisou dar para chegar ao painel do Edifício Minerasil. Quando contava que aquela obra tinha sido feita com a lama tóxica da Vale, os ouvintes se arrepiaram. 

O artista afirma que é um tributo às vítimas de Brumadinho, mas ao mesmo tempo a todos operários que se sentirem representados: os fruteiros que descarregavam as melancias diariamente ao lado do local, os ambulantes que levavam suas mercadorias para a 25 de março, os trabalhadores do Mercado Municipal, os entregadores de marmitas.

Mundano até pensou em concretizar a releitura de Operários em Brumadinho. Mas percebeu que quem vive ali lida diariamente com o pó proveniente da mineração sobre as suas mesas e camas e o barulho das máquinas trabalhando dia e noite. Decidiu, então optar por São Paulo, porque “tudo o que você vê de ferro aqui veio de mineração e de Minas Gerais” – não é à toa também o Edifício Minerasil. 

"Artivismo"

Questionado sobre o papel de sua arte, que coloca a cidade enquanto um museu aberto, o artista lembra que os museus estão em apenas 25,9% das cidades brasileiras, de acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), de dezembro de 2019.

Nesse sentido, Mundano defende que a arte deve ser democrática, e não elitizada. “Se essa obra estivesse em um ambiente fechado, não teria o mesmo impacto. Para mim, a obra de arte tem isso: só faz sentido se estiver contribuindo para uma transformação, um legado e não apenas uma obra só decorativa. Acho que a arte da próxima década será ‘artivista’", reflete.

Ao todo, foi um ano inteiro de estudos, um mês de preparação e sete dias para a execução da pintura, realizada por Mundano e mais quatro artistas. O trabalho ficou pronto no aniversário de um ano do crime socioambiental de Brumadinho – a obra foi financiada pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo com um valor de R$ 50 mil, inteiramente utilizados, e ainda complementados pelo artista.

“A Vale coloca o lucro dela acima das vidas quando ela sabe que pode romper e mantém um refeitório com centenas de funcionários abaixo da barragem assume esse crime. Então foi um assassinato. E aí eu pensei: não é possível que aconteceu de novo e a gente não aprendeu nada com Mariana.”

O modelo adotado pela mineradora Vale S.A., como montante, é considerado o mais barato e menos seguro por especialistas da área, mais do que as opções de jusante e linha de centro.

 

Edição: Leandro Melito