O Ministério Público Federal (MPF) entrou na Justiça com uma ação civil pública para suspender a nomeação do missionário Ricardo Lopes Dias para o cargo de Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Ricardo Lopes Dias é ligado à Missão Novas Tribos do Brasil, onde atuou por dez anos, em um movimento de fazer contatos forçados e evangelizar povos isolados. A ação aponta ameaça de genocídio e etnocídio contra povos indígenas isolados, conflito de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil desde a década de 1980 em relação a esses povos.
O MPF teve acesso a documentos do movimento missionário que permitem verificar o esforço em obter dados que auxiliem “na tentativa de identificar as necessidades e oportunidades entre aqueles que pouco ou nada ouviram de Cristo” e considera que a coordenadoria da Funai permite acesso a dados sobre identificação e localização dos povos em isolamento voluntário e de recente contato que podem ser utilizados por missões evangelizadoras.
“Para o MPF, esses dados são extremamente sensíveis e o acesso de missionários a eles pode colocar os povos em risco de genocídio e etnocídio”, diz nota distribuída à imprensa nesta terça-feira (11).
Os procuradores ressaltam que Dias é uma pessoa com profundas ligações “com organização que tem por meta estreitar com os indígenas, preferencialmente os isolados e de recente contato, relações de dependência favoráveis à propagação da fé, representando um movimento assimilacionista e de integrar o indígena à sociedade nacional”.
Conflito de interesses
No processo, o MPF ressalta que a responsabilidade da coordenação assumida por Ricardo Lopes Dias é implementar uma política não assimilacionista e não integracionista e aponta “nítido conflito de interesses” em sua nomeação.
“A referida nomeação aponta para o esvaziamento da proteção constitucional aos direitos dos povos indígenas e para vícios do ato administrativo”, diz o texto.
Para os autores da ação civil pública, “a nomeação de pessoa que não seja servidor público efetivo e que, ademais, possua vinculação com organização missionária cuja missão é evangelizar povos indígenas, reveste-se de evidente conflito de interesses com a política indigenista do Estado brasileiro, cujas premissas encontram-se na Constituição de 1988 e nos tratados internacionais de direitos humanos”.
Caso a Justiça concorde com o pleito, a portaria nº 167/2020 da Funai será anulada, o que assegura que apenas servidores efetivos da fundação possam coordenar a área que protege povos em isolamento voluntário e de recente contato. Consequentemente, a portaria nº 151/2020, que nomeou Ricardo Lopes Dias, também será anulada.
Histórico de evangelização
Dias atua na região amazônica desde agosto de 1997, com o intuito de evangelizar os povos originários da região. A experiência é narrada em sua dissertação As ‘traduções’ Matsés do contato histórico com missionárias do Summer Innstitute of Linguistics – SIL, apresentada na Universidade de São Paulo (USP) em 2015.
No texto, o missionário e antropólogo fala da decisão que tomou para a vida ainda na juventude. “Após ouvir um missionário veterano expondo a necessidade de novos voluntários para o trabalho evangelístico de indígenas, decidi empenhar-me especialmente nessa causa”. Em 1992, passou a frequentar o curso “Missão Novas Tribos do Brasil”, que tem duração de cinco anos.
“Estudando nos três primeiros anos Teologia (no Instituto Bíblico Peniel, em Jacutinga/MG), um ano de missiologia e treinamento missionário (no Instituto Missionário Shekinah, em Nova Alvorada do Sul/MS) e um ano de capacitação em linguística (no Instituto Linguístico Ebenézer, em Vianópolis/GO)”, conta o pastor em sua dissertação.
Em outro trecho, Dias narra sua chegada na TI Vale Javari, onde a Funai mantém um importante trabalho de proteção de índios isolados. “Até então, o alvo era desenvolver um programa de evangelização dos Matsés no Brasil, o que resultaria de um trabalho demorado, meticuloso e sofrível que envolveria jornadas de estudos para aquisição do idioma Matsés, coleta de material cultural para análise, e progressivamente, uma elaboração de material linguístico, didático, informativo e religioso.”
Nos agradecimentos de sua dissertação, o pastor faz especial menção “às igrejas que me proporcionaram a ida e a permanência no Amazonas, apoiando tanto a mim e minha família como também a eventuais projetos com os Matsés”. Dias é membro da Igreja Batista Fundamentalista Cristo é Vida, de Fortaleza, no Ceará.
Os indígenas Matsés são um dos cinco grupos já contatados na TI Vale do Javari, onde se encontram o maior número de grupos isolados do país. A Funai possui quatro bases etnoambientais dentro da TI.
Edição: Leandro Melito