Desde novembro de 2019, Dalva dos Santos, de 48 anos, vive com a tristeza de quem perdeu o sobrinho de 14 anos, e o medo de quem aponta agentes policiais como os culpados pela morte da criança.
Lucas Eduardo Martins dos Santos desapareceu na noite do dia 12 daquele mês, enquanto chovia e fazia frio. Três dias depois, um corpo foi encontrado somente de cueca, no lago do Parque Natural Municipal do Pedroso, a 14 quilômetros de sua casa, na Favela do Amor. A confirmação de que de fato era ele veio 15 dias depois, em 28 de novembro.
Um laudo necroscópico do Instituto Médico Legal (IML) apontou afogamento como o motivo da morte. Familiares, no entanto, defendem que o resultado é falso. Para as três tias e a avó materna, que viram o corpo de Lucas, o menino foi espancado até a morte e jogado no lago.
“Até os piores bandidos têm um julgamento, uma lei para punir. E ele que era uma criança simplesmente foi arrastado de casa e jogado para o lago, quebraram ele todinho”, disse Dalva em entrevista ao Brasil de Fato. Ela afirmou que a criança apresentava hematomas pelo corpo, costelas e ossos da face quebrados, lábios e supercílios cortados.
A narrativa é endossada por Cícera dos Santos, de 43 anos e também tia de Lucas: “O laudo dele não está mostrando que os ossos do rosto dele estavam quebrados. Ele estava muito machucado, a boca estava aberta mesmo, o supercílio cortado. Aquilo não foi afogamento. Já vi várias pessoas afogadas, de mais de oito dias dentro da água, e nem ficava daquele jeito”.
Até os piores bandidos têm um julgamento, uma lei para punir. E ele que era uma criança simplesmente foi arrastado de casa e jogado para o lago, quebraram ele todinho
Os familiares se reuniram, na manhã desta quinta-feira (13), em frente ao Paço Municipal de Santo André, às 9 horas da manhã, por respostas sobre o caso. Tanto Cícera e Dalva quanto Maria do Carmo dos Santos, avó do garoto, denunciaram, durante a manifestação, o clima de perseguição que sofrem diariamente por apontarem agentes policiais como os culpados pela morte.
“Quando eles entram na favela, falam assim: olha aí as advogadas do vagabundinho que se afogou, foi nadar na represa. Já falaram para a minha filha, que estava em um dos protestos, que iam fazer um microondas com ela, enrolar em um colchão e tacar fogo”, disse Cícera ao Brasil de Fato. Hoje, seus quatro filhos não saem mais de casa por causa do “medo dos policiais”.
Diante do clima de perseguição, a família decidiu que não organizará mais protestos no lugar em que mora, na Favela do Amor. Da última vez que tentaram, Cícera também recebeu ameaças: publicou o evento nas redes sociais anunciando o evento e trinta minutos depois “os policiais chegaram na frente de casa perguntando se a gente ia fazer baderna na avenida que eles estavam de olho”.
O desaparecimento e a morte
Maria do Carmo Martins dos Santos, de 66 anos, avó do Lucas, contou à reportagem do Brasil de Fato que policiais foram até a casa de Maria, “sem ser chamada, sem mandado e nem denúncia, procurar pelos filhos dela”, no mesmo dia do desaparecimento de Lucas.
“Eles não falaram porque estavam procurando os meninos. Um entrou e revistou a casa, enquanto outro ficou do lado de fora, com o rosto coberto.” Quando os policiais foram embora, a família foi atrás de Lucas, mas nunca mais o achou com vida.
Dalva, uma das tias de Lucas, contou que, naquele dia chuvoso, o jovem estava “todo vestidinho, de blusa de frio, camiseta por dentro, tênis, e foi encontrado só de cueca. Quando e como uma criança de 14 anos vai andar 14 quilômetros para nadar em um lugar no frio? Nem nada ele sabia, ele morria de medo porque não sabia nadar. Quantos mais vão ter que morrer depois de Lucas?”
::Dez dias após sumiço de menino Lucas, Favela do Amor vive em clima de medo::
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de SP (SSP-SP) afirmou que as circunstâncias do desaparecimento e da morte estão sendo apuradas por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM), realizado pela corporação. As investigações também estão sendo feitas pela delegacia de homicídios de Santo André, pelo 41° Batalhão da PM e pela Corregedoria Geral da PM.
Até o momento, dois policiais suspeitos de envolvimento no desaparecimento de Lucas foram afastados. Em uma das viaturas usadas pelos agentes, peritos encontraram uma mancha de sangue. O material genético foi analisado pelo Instituto de Criminalística, e o caso segue em segredo de Justiça.
Sobre as denúncias feitas pelos familiares de perseguição, a SSP repetiu parte da nota anterior: “A Polícia Militar esclarece que todas as circunstâncias relativas aos fatos são alvo de apuração por meio de Inquérito Policial Militar (IPM)”, afirmaram no documento.
Ao Brasil de Fato, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que participou da organização da manifestação desta quinta-feira, afirmou que casos como o do Lucas não são uma exceção e o desaparecimento de jovens negros é banalizado no Brasil.
Mãe presa
A narrativa se tornou ainda mais complexa com a prisão da mãe de Lucas. Uma semana após o desaparecimento do garoto, Maria Marques Martins dos Santos foi presa pela Polícia Civil do Estado de São Paulo ao chegar no Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) para prestar depoimento sobre o caso do seu filho – o objetivo era tentar reconhecer os policiais que estiveram em sua casa no dia do sumiço de Lucas, por meio de fotos.
Maria, que havia sido denunciada em 2012 por tráfico de drogas, permaneceu durante alguns dias encarcerada, mas foi colocada em liberdade pouco depois por ser ré primária. Em 2013, a juíza Teresa Cristina Cabral Santana a absolveu da acusação. Em sua decisão, afirmou que “os policiais ouvidos apresentaram versão contraditória” e que “a droga não foi encontrada com a acusada; estava em outro local, não tão próximo da acusada, que é conhecido como ponto de venda de droga.
No mesmo ano, no entanto, o Ministério Público recorreu. No Tribunal de Justiça de São Paulo, Maria foi condenada a cinco anos por tráfico de drogas e foi considerada procurada pela Justiça, mas só soube da condenação no dia em que foi depor sobre o caso do seu filho.
Hoje, presa na Penitenciária Feminina de Santana, zona norte de SP, Maria toma cinco medicamentos por dia. Durante as visitas de sua mãe, Maria do Carmo, ela pergunta por Lucas, mesmo tendo ido ao enterro do garoto. “Ela pergunta sobre o Lucas, se ele está bem, se ele se alimentou, se mãe deu comida para ele. Aí de repente ela começa a chorar, aí é aquele desespero, minha mãe começa a chorar também, o pessoal dá a medicação e ela vai dormir”, afirmou Cícera, tia de Lucas.
“As presas chamam ela de bailarina, porque ela não para, é o tempo inteiro para lá e para cá, rodando de um lado para o outro. Por conta da medicação, ela também está com problemas nos rins.”
Edição: Rodrigo Chagas