A aprovação dos projetos de lei propostos pelo governo federal para facilitar o acesso a armas de fogo pode fortalecer o crime por vias legais, de acordo com o Instituto Sou da Paz.
No momento, duas propostas para alterar o Estatuto do Desarmamento tramitam no Legislativo: o PL 3.723/2019, aprovado na Câmara no fim do ano passado, e o PL 6.438/2019, apresentado em dezembro aos deputados e à espera de análise de comissões.
O primeiro projeto flexibiliza o acesso a colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs, permitindo inclusive o porte (o direito de andar armado). Além disso, libera a recarga de munição e revoga a necessidade de marcação de número de série em munições.
Já a segunda proposta possibilita a aquisição de até dez armas de fogo, além de munições e acessórios, a profissionais como agentes de trânsito, advogados, agentes de fiscalização ambiental e peritos criminais.
Não se trata de gostar ou não gostar de arma de fogo. É um fato. As armas de fogo que são utilizadas no crime têm na sua esmagadora maioria origem no mercado legal.
Para o gerente de advocacy do Sou da Paz, Felippe Angeli, o aumento das possibilidades de compra de armas no mercado legal acaba, no fim, abastecendo o crime organizado.
“De pouco a pouco, você vê essa sanha da presidência da República de se criar, verdadeiramente, um faroeste aqui no Brasil. O problema maior é esse: não se trata de gostar ou não gostar de arma de fogo. É um fato. As armas de fogo que são utilizadas no crime têm na sua esmagadora maioria origem no mercado legal. As armas são desviadas dos ditos cidadãos de bem que compram para proteger sua família ou de seguranças privados que trabalham com isso e acabam perdendo”, comenta.
"Despachantes"
No caso da facilitação aos CACs, Angeli ressalta que essa pode ser uma via para qualquer pessoa adquirir armas com facilidade, mesmo sem interesse na prática esportiva.
“Cada vez mais, esses clubes de tiros são utilizados como despachantes para que se obtenha arma de fogo. Inclusive eles fazem, até de forma ilegal, propaganda disso, o que a lei proíbe. Não se trata de proibir ou realizar uma cruzada contra atiradores esportivos que são sérios, são idôneos. Mas se trata de identificar e de denunciar que existe muito desvio, existem aqueles clubes de tiros que não são idôneos”, afirma o gerente do instituto.
Já para agentes de trânsito, por exemplo, a preocupação e é em como treiná-los e controlar suas armas, já que estão sob a responsabilidade de municípios.
“Uma coisa é tratar de porte de arma para organizações policiais. São pessoas que estão incluídas nas forças de ordem. Mas quando você trata, por exemplo, de agentes de trânsito, é um grande problema, porque eles são municipais. Você tem municípios extremamente pequenos, que não têm a menor organização para conseguir cuidar de um arsenal para dar aos seus agentes”, ressalta o especialista.
A segurança é pública. Não se trata, agora, de dizer que cada um faça sua própria segurança na cintura. Ou seja, você privatizar a segurança pública dessa forma.
O acesso a armas e munições por atiradores civis é algo que, embora os projetos de lei ainda não estejam aprovados, cresce vertiginosamente no país – no ano passado, conforme o Sou da Paz, os cidadãos foram responsáveis pela compra de 32 milhões de projéteis, a mesma quantidade que as forças de segurança pública. O volume superou em 143% o quantitativo de munições que o Exército.
“A segurança é pública. Não se trata, agora, de dizer que cada um faça sua própria segurança na cintura. Ou seja, você privatizar a segurança pública dessa forma. Ainda que você possa prever algum nível de acesso, já que o Brasil é um país diverso – você tem regiões rurais em que o acesso ao policiamento é mais distante –, uma flexibilização generalizada, que é o que se busca, é deletéria à segurança pública”, afirma Felippe Angeli.
Decretos e caos
Afora os projetos de lei, a flexibilização já em curso no Brasil é fruto também de uma série de decretos editados por Jair Bolsonaro. O presidente assinou pelo menos três mudanças substanciais em 2019 – antes disso, a regra anterior vigorou de 2004 a 2018.
O gerente de advocacy do Sou da Paz diz que o vaivém de regras gera um caos normativo, o que dificulta a compreensão e discussão sobre o tema.
“Tem vários aspectos: o aspecto de má qualidade do trabalho mesmo, administrativo, legislativo, por iniciativa do governo federal, e também essa sanha pela política de armas, que acaba criando uma confusão que dificulta a reação daqueles que são contrários. É difícil avaliar, de fato, as intenções, mas o resultado é de confusão”.
Edição: Rodrigo Chagas