SUS

Serviços de saúde para a população trans sofrem com fila de espera em Pernambuco

Centenas de pessoas trans sofrem com o medo de buscar atendimento médico e serem desrespeitadas

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais - Ikamahã/PCR

Nos espaços físicos, a população trans em Pernambuco pode contar com quatro unidades que atendem prioritariamente este público. Mas, ainda assim, não tem sido o melhor cenário para quem pretende fazer o processo de transição. Segundo o articulador estadual da Rede Trans Brasil, Vinícius Rui,  o sistema estadual de saúde para a população trans ainda é ineficiente.

“Por mais que a gente tenha muitos dispositivos voltados para a população LGBT aqui no estado, nós temos muitas filas de espera e também uma problemática ainda maior, porque elas são concentradas aqui na capital. Por exemplo, uma pessoa trans que é de Oricuri, vai ter que viajar 12 horas, passar o dia inteiro em Recife para conseguir ser atendida e depois mais 12 horas de volta. São quase três dias e nem todo mundo tem essa possibilidade”, diz.

Vinícius é homem trans e estudante de Educação física e sabe bem da dificuldade de acesso aos serviços de saúde no interior do estado. Ele é de Caruaru, agreste de Pernambuco e só na capital conseguiu começar seu processo de transição. “Eu vim morar no Recife para estudar. Minha transição começou quase um ano depois em que eu já estava no movimento LGBT. Então, eu já fui direto no Cisam [Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros]. Depois que fiz o acolhimento já sabia que não podia tomar hormônio por conta própria e que deveria aguardar o tempo certo, com prescrição do endocrinologista. Mas, não é assim que acontece com todo mundo”.

Ainda segundo Rui, muitos meninos e meninas não conseguem esperar o tempo exato. “Mesmo estando cadastrado nos serviços, muitos e muitas não conseguem esperar, porque não conseguem lidar com a disforia e começam a usar os hormônios. Isso traz muitos riscos para vida”, conta.

Esta foi a realidade de Gigi Abagagerry, educadora social e mulher trans, que começou seu processo de transição sozinha, com orientações apenas de outras mulheres trans. “Iniciei por mim mesma, aos 18 anos, com informações vindas das outras, porque tinha receio de ir à uma unidade de saúde. Só mais ou menos há um ano que fui buscar cuidados no SUS e fui bem atendida, mas não me dei muito com o bloqueador que me passaram. Comigo deu certo, mas não é recomendado, é preciso mesmo ter um acompanhamento médico”, diz.

Para o médico e professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Aristóteles Cardona, os serviços de atendimento sofrem com limites de coisas primárias. "Mesmo tendo ambulatórios que atendem especificamente a população LGBT, ainda estamos aquém do necessário. Eles precisam ainda de muito apoio dos setores da saúde, desde os cuidados com o respeito dos nomes sociais, como os profissionais que deveriam estar preparados para recebê-los. Esse é um ponto que temos muito limite. Do que eu conheço, nós não temos capacitações nas escolas médicas que preparem para esta causa", relata.

Preconceito

Gigi também precisou de um outro tratamento de saúde porque passou mais de 10 anos fazendo uso abusivo de drogas ilícitas. E em dois serviços de tratamentos diferentes teve duas experiências completamente distintas. A primeira é que ela passou a ser acompanhada em uma casa terapêutica que pertencia a uma igreja evangélica.

“Quando cheguei lá fui submetida a não ser eu, durante dois anos. Me obrigaram a fazer, dentro dos exames que são requisitos para entrar, o teste de HIV/Aids. Só eu que tive que fazer. Como deu reagente, eles chamaram todos os homens que estavam em tratamento e expuseram toda a minha história, como forma de querer bloquear que as pessoas se relacionassem comigo. Além disso cortaram meus cabelos e me fizeram usar roupas masculinas”, conta a mulher que hoje trabalha com a conscientização de pessoas em situação de rua que fazem usos abusivos de drogas.

Em sua segunda tentativa ela participou do programa Atitude, na Policlínica Lessa de Andrade,  Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids em Pernambuco. “Depois de dois anos na Comunidade Terapêutica que não respeitaram quem eu sou, por isso, nada deu certo, eu voltei ao uso e às ruas. Mas, aí quis me tratar de novo e conheci o Programa Atitude. Lá fui muito bem recebida, mesmo ainda usando as vestimentas masculinas, eu já tinha muito volume no seio e eles me perguntaram logo em qual alojamento eu iria me sentir confortável. Isso mudou completamente o decorrer do meu tratamento”, afirma.

Quando questionado sobre o que falta para a eficácia de todo o sistema, Vinícius Rui não hesita “nós precisamos de profissionais cada vez mais sensíveis à causa LGBT, porque sem eles vamos continuar tendo várias denúncias de pessoas que eram indelicadas no trato, nas perguntas. E depois, ajustar os ambulatórios para conseguirem dar o suporte necessário, tanto na medicação, como no acompanhamento. O do Cisam, por exemplo, existe há mais de 4 anos e só em 2019 passou a distribuir os hormônios. Além disso, precisamos sair da capital e fazer chegar em todos os lugares de Pernambuco”, diz.

SUS

Aristóteles aponta que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem um papel fundamental para o avanço da saúde para as pessoas trans. "O SUS tem um papel fundamental sobre os cuidados e com a preocupação com o ser humano de uma maneira integral. E isso inclui o serviço está apto e preparado para cuidar das pessoas trans também, em todos os seus aspectos, como também na saúde básica. Temos que avançar nos serviços e ampliar o acesso. Trazer os ambulatórios especializados para o interior do estado", defende.

Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem dado passos importantes para a readequação das necessidades das pessoas. No ano de 2009, através da Portaria nº 2.836/2009 do Ministério da Saúde, Instituiu-se a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT no âmbito do SUS, com o objetivo geral de promover a saúde integral da população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional e contribuindo para a redução das desigualdades.

Considerando a necessidade de fortalecer a implementação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT em Pernambuco foi assinada a Portaria SES/PE Nº 445/12 que instituiu o Comitê Técnico Estadual de Saúde Integral de LGBT de Pernambuco que assegura ao usuário o acesso universal, igualitário e ordenado às ações e serviços de saúde do SUS.

O decreto ainda oficializou que o nome social deve estar presente em todos os registros dos serviços da rede pública de saúde como fichas de cadastro, formulários e prontuários, e deverá ser colocado por escrito, antes do respectivo nome civil, que deverá estar entre parênteses em letras menores.

A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Saúde de Pernambuco, mas não teve resposta até o fechamento desta edição.

Transexualidade

A transexualidade é condição da pessoa cuja identidade de gênero difere daquela designada no nascimento. Uma pessoa transexual pode procurar fazer a transição social para outro gênero, através da forma como se apresenta ou de intervenções no corpo, podendo ser redesignação sexual ou apenas feminilização ou masculinização, dependendo do gênero a ser transicionado.

Travestis e transexuais ainda são vistas pela medicina como seres portadores de patologia e de uma Classificação Internacional de Doenças (CID) que lhes identifica. Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais, porém, continua na Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), mas em uma nova categoria, denominada "saúde sexual".

A feminilização e masculinização envolvem aspectos comportamentais, de vestuário e biológicos, sendo o primeiro ligado meramente a questões sociais e o outro a ideia de sexo feminino ou masculino, criado pela espécie humana. O caminho para o processo de ressignificação carrega diversos estereótipos, como também preconceitos.

Centenas de pessoas trans sofrem, por exemplo, com o medo de buscar atendimento médico e serem desrespeitadas quanto ao nome social, fazendo que passem por constrangimentos e até aos questionamentos sobre a necessidade da transição. Esse conjunto de fatores fazem com que muitas pessoas injetem substâncias em seus corpos, sem nenhum acompanhamento médico.

Confira as unidades de atendimento para a população trans em Pernambuco

Unidades de atendimento:
Espaço de Acolhimento e Cuidado Trans do HC
Segundo andar do bloco E do HC, na sala 236, de segunda a sexta, das 8h às 17h.
Endereço: Avenida Professor Moraes Rego, 1235.
Telefone: (81) 2126.35 v87

Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE)
Endereço: Rua Visconde de Mamanguape, S/N, Encruzilhada
Telefone: (81) 3182-7708 e 0800-081-1108

Ambulatório LGBT Patrícia Gomes, da Políclínica Lessa de Andrade
Acolhimento de segunda a sexta-feira, das 13h às 17h. Atendimento médico na terça e quarta-feira.
Endereço: Estr. dos Remédios, 2416, Madalena
Ambulatório LGBT Darlen Gasparelli
Segunda à sexta-feira, das 8h às 17h.
Endereço: Rua Joaquim Cavalcante de Santana, no Bairro Novo do Carmelo, Camaragibe.

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Leandro Melito e Monyse Ravena