Bolsonaro finalmente fez trocas na Esplanada que já vinham sendo aventadas
Na mesma semana em que o miliciano ligado à família presidencial foi morto em uma estranha operação policial e um dos principais ministros escancarou a política antipovo do governo, Bolsonaro resolveu enfim fazer mudanças nos ministérios, colocando mais um militar no Palácio do Planalto.
1. Casa grande sem freios. Uma virtude o ministro Paulo Guedes tem: fala o que lhe vem ao coração. Depois de chamar os servidores públicos de parasitas, o ministro da Economia deu mais uma mostra de que toda essa ruptura institucional vivenciada pelo Brasil nos últimos anos teve como força motriz o mais puro e genuíno ódio de classe.
Para explicar a alta recorde do dólar, o ministro reverberou o que uma parte da elite sempre teve vergonha de dizer. “Empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada”, disse o ministro, se referindo à época do dólar baixo.
Declaração feita no momento em que mais uma vez se noticia que o programa de construção de cisternas no semiárido vem sofrendo uma drástica redução em seu ritmo e que o governo Bolsonaro congelou o Bolsa Família nas regiões mais pobres do país.
Ou seja: Paulo Guedes não cometeu uma gafe, apenas verbalizou um projeto. Como diz Reinaldo Azevedo, o ministro fala como se estivesse operando um milagre econômico, mas não está. Como aliás atesta o próprio Banco Central, que vê melhora no mercado de trabalho, mas com produção industrial e indicadores preliminares de investimento abaixo do esperado.
O dólar alto em tese é bom para exportações, mas na prática também significa fuga de investimentos e impactos nos custos das indústrias automobilística e farmacêutica, por exemplo. Se a inflação segue baixa, é sinal também de que a demanda está fraca. E a tal recuperação econômica segue no compasso da lentidão e da incerteza: o varejo apresentou uma retração em dezembro, o que, somado à queda na indústria e à lenta recuperação do setor de serviços, jogou mais uma ducha fria nas previsões otimistas para a economia.
“O efeito do FGTS sobre o consumo começou a perder força, e a indústria não consegue crescer via comércio exterior”, escreve nesta semana a jornalista Miriam Leitão. Para além dos números, a fala de Guedes pegou mal, mais até que a fala contra os servidores, e nos bastidores se diz que prejudica a relação com o Congresso na aprovação das reformas, ainda que, convenhamos, o Congresso entregou tudo que o Planalto pediu até agora - e mais um pouco.
2. A Educação na direção correta. A fala de Paulo Guedes ajuda a entender como o ministro da Educação se mantém no cargo apesar do caos escancarado com o fiasco do Enem. Porque, em seu íntimo, a elite brasileira tolera qualquer coisa do governo Bolsonaro em nome do já mencionado ódio de classe.
De acordo com a coluna de notas econômicas da Folha de S. Paulo, empresários apoiam a gestão de Abraham Weintraub, aprovado em um controverso concurso na Unifesp, porque ele encarna a necessidade de uma “reforma ideológica” na área.
Reforma ideológica que significa colocar um discípulo de Olavo de Carvalho para escolher os livros didáticos para crianças e que vem custando dinheiro. O MEC torrou R$ 2,5 milhões na propaganda da carteirinha digital, criada para tirar a atividade da UNE, mas a MP caduca neste domingo (16).
Há quem diga que Weintraub segue no cargo porque pertence à cota olavista do governo, comportando-se como um troll autêntico do bolsonarismo, mas são fortes os sinais de que vem perdendo apoio inclusive deste setor no Congresso, tendo ficado isolado na audiência da Comissão de Educação nesta semana.
No fim, se Weintraub cair, será menos pelas trapalhadas à frente do MEC e mais pela difícil relação com o Congresso. No centro está a questão da permanência do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).
Boa parte dos parlamentares entende que o Fundo é importante para os municípios - e 2020 é ano eleitoral - mas Weintraub quer fazer mais este agrado ao andar de cima, pensando em passar os recursos do Fundeb e as creches para o mercado.
3. Capanga da milícia. Se a agenda econômica de Paulo Guedes patina e só produz resultados nas bravatas anti-trabalhadores, aquele que seria a voz moderada dentro do governo se torna cada vez mais um bolsonarista de carteirinha - seja para garantir a recompensa da cadeira no Supremo ou de olho na popularidade rumo a 2022.
Na quarta (12), Sergio Moro foi à Câmara discutir a PEC que institui a condenação em segunda instância, mas o foco da reunião foi a discussão com o deputado Glauber Braga (PSOL), que chamou o ministro de “capanga de milícia” e o acusou de proteger a família Bolsonaro. Nas redes sociais, Moro reagiu dizendo que os deputados do PSOL tiraram a referência às milícias no pacote anticrime, como se a mera menção às facções no texto da lei fosse produzir algum resultado.
No texto enviado à Câmara, Moro acrescentava à lei de organizações criminosas nomes de facções do tráfico e milícias, inspirado na legislação italiana. O grupo de trabalho que analisou as propostas retirou a lista nominal, mantendo o artigo sobre as organizações criminosas como já estava na lei. Na verdade, o que Moro faz é a política que tanto diz não gostar, tentando colocar no colo da esquerda uma relação que fica mais adequada à família Bolsonaro.
Analistas simpáticos ao ministro vibraram com a postura de Moro, que indicaria uma disposição para uma futura eleição. Vale ver o vídeo em que Marcelo Freixo rebate a declaração de Moro, mostrando que o texto original era fraco e lembrando que o ministro é fiador de um governo cuja família tem fortes ligações com milicianos.
Enquanto isso, projetos de lei propostos pelo atual governo para facilitar o acesso a armas de fogo podem justamente favorecer organizações como as milícias. E as sempre espetaculosas ações da Polícia Federal refrearam sob o governo Bolsonaro. Já que o assunto é milícias, vale lembrar que o Ministério da Justiça não havia incluído na lista de criminosos mais procurados do Brasil o ex-capitão Adriano da Nóbrega, acusado de comandar a mais antiga milícia do Rio de Janeiro.
4. Esqueletos no armário. A estranha relação da família presidencial com Adriano da Nóbrega, aliás, é mais um incômodo esqueleto no armário com o qual os liberais que endossam o governo precisam conviver. A operação policial que terminou com a morte do chefe do Escritório do Crime, escondido num sítio de um vereador do PSL na Bahia, até agora tem muito mais perguntas que respostas.
Por que ele estava escondido? Sozinho em um sítio, por que acabou morto? Uma operação policial fruto de um ano de trabalho de investigação, inteligência e cooperação entre as polícias do Rio e da Bahia, que termina não com a prisão, mas com a morte de um foragido peça-chave em casos que movimentam a República, tem total cheiro de queima de arquivo, tese também defendida pelo advogado do criminoso.
Para piorar, a revista Veja publicou uma reportagem com fotos do que seria o corpo de Adriano, afirmando que os tiros foram feitos de muito perto, o que indicaria uma execução (para quem for clicar na matéria, atenção para as imagens fortes). Além disso, o cenário do sítio em que Adriano foi morto ficou contaminado para eventuais investigações e a ação das polícias não foi gravada.
Adriano chegou a ser ouvido no inquérito sobre a morte da vereadora Marielle Franco, mas ele não era um suspeito do caso. Sua maior fama vinha da ligação com o gabinete de Flávio Bolsonaro, por quem foi condecorado inclusive quando preso, e onde sua mãe e sua mulher já trabalharam. Um perfil satírico no Twitter, inclusive, fez uma boa sequência explicando essas relações.
Mesmo assim, a morte de Adriano tem sido utilizada para o argumento da federalização do caso Marielle, o que já foi defendido por Sérgio Moro. O ministro por sua vez tem guardado estranho silêncio sobre um caso que ocupa as principais manchetes desde o final de semana.
5. Caserna do Planalto. Numa semana que começou com a morte de um miliciano ligado à sua família e continuou com a fala desastrada de um de seus principais ministros, Bolsonaro finalmente fez trocas na Esplanada que já vinham sendo aventadas há algum tempo.
Se os militares pareciam ter perdido espaço no governo para a ala Olavista, com o general Walter Braga Netto na Casa Civil o "Partido Militar" passa a ter quatro generais e nove entre os 22 ministros, incluindo todos os palacianos. Outros 2500 militares estão em postos de chefia ou de assessoramento.
A escolha reforça ainda a posição do ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, padrinho político do novo ministro, e também do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, que já foi comandante de Ramos e Braga Netto nas Olimpíadas de 2016.
Já Onyx Lorenzoni, último remanescente do núcleo original do Planalto, foi acomodado no Ministério da Cidadania no lugar de Omar Terra, possivelmente premiado com uma embaixada após contratos suspeitos sob sua gestão. Aparentemente, Bolsonaro sai ganhando com a troca, já que não terá pretensos candidatos presidenciais na sua antessala, ao mesmo tempo em que já deu o recado de que não será tutelado, nem pelos militares.
Segundo Helena Chagas, com as nomeações, Bolsonaro não busca eficiência, mas força. Quer mostrar que teria respaldo militar em toda e qualquer situação, mesmo que isso não seja verdade. Da parte militar, além da Casa Civil, a turma da farda ganhou o controle do Conselho Nacional da Amazônia Legal, o anúncio de um investimento de R$ 6 bi para a Marinha e ainda pode levar a Embaixada de Israel, sonho de consumo evangélico.
Por outro lado, os analistas parecem concordar que Braga Netto não vai cuidar das articulações políticas, o que mudaria o status da relação com o Congresso de “mal feita” para “inexistente”. Isto num cenário em que os parlamentares concordam com a agenda neoliberal, mas não estão dispostos a arcarem sozinhos com os ônus das medidas impopulares.
Para Igor Gielow, a nomeação de mais um militar, aliada à fala de Guedes sobre as domésticas, reforça o isolamento de Bolsonaro, cercado de aliados circunstanciais e tendo que apostar tudo nas redes sociais para manter uma franja do apoio popular.
6. A cruz e o fuzil. No pacote de bondades recebido pela ala militar nesta semana, está a transferência do Conselho Nacional da Amazônia para a vice-presidência, ou seja, para responsabilidade do General Mourão, retirado do ostrascismo em que foi colocado no ano passado. Mais uma prova de que Bolsonaro busca a reconciliação com os quartéis.
Se na aparência o Conselho não tem recursos e parece esvaziado por não contar nem com indígenas, nem com a sociedade civil ou governadores; na prática, é o contrário: o governo federal sozinho coordena e acompanha as políticas públicas (do próprio governo) para a região, como denunciou nota do Greenpeace.
A nota gerou a tradicional reação destemperada de Bolsonaro, que cogitou ainda a criação de um Ministério da Amazônia para aplacar as críticas, além de dar uma alfinetada no Papa Francisco.
Entretanto, é só o crucifixo católico que incomoda o bolsonarismo na Amazônia. Conversa gravada entregue ao Intercept revela que missionários evangélicos trabalharam pela nomeação de alguém com o perfil do pastor Ricardo Lopes Dias para a área que cuida de índios isolados da Funai.
O áudio mostra também que o objetivo do grupo é converter os indígenas ao cristianismo. A intenção parece ser a mesma da inclusão de uma ONG de missionárias ligadas a ministra Damares na expedição na aldeia do povo suruwahá, indígenas recém-contatados na Amazônia. Compõem a equipe duas indígenas ligadas à Jocum (Jovens com uma Missão), entidade missionária de origem americana que já foi expulsa do território suruwahá "em função de atividades proselitistas e discriminatórias", segundo o Ministério Público Federal (MPF).
Ainda na surdina, o governo colocou de contrabando duas medidas numa medida provisória que alteram significativamente o código florestal: uma delas permite liberar mais 30% de áreas para desmatamento em Roraima e outra reduz a área de conservação da Floresta Nacional de Roraima. Justamente num momento em que se estima que a destruição da Amazônia seja muito maior do que os 20% de área desmatada.
7. Greve dos petroleiros. O novo Brasil que emergiu do impeachment conta com o Poder Judiciário como aliado de primeira hora. Talvez isso explica a presteza com que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Supremo Tribunal Federal (STF) agem para tentar abafar a greve dos petroleiros, cuja mobilização é inversamente proporcional à cobertura que vem recebendo da grande imprensa.
Desde o primeiro dia de fevereiro, os petroleiros estão parando as atividades para exigir a suspensão das demissões na Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná (Fafen-PR) e o cumprimento do acordo coletivo de trabalho. De acordo com balanço da Federação Única dos Petroleiros (FUP) divulgado na quinta (13), são mais de 20 mil petroleiros mobilizados em 113 unidades da Petrobras em 13 estados do país.
Apesar de a Petrobras afirmar que a produção não está sendo prejudicada, a ANP já vê com preocupação o risco de desabastecimento de combustíveis. Na quarta (12), Dias Toffoli concedeu liminar, sustando decisão de um colegiado do TST e ratificando outra liminar, concedida por Ives Granda no final do ano passado, de forma a determinar entre outras coisas o efetivo mínimo de 90% dos trabalhadore nas unidades, o que na prática proíbe a greve.
8. A benção do Papa. Por intermédio do presidente argentino Alberto Fernández, Lula manteve um encontro com o Papa Francisco no Vaticano nesta quinta (13). Segundo o próprio Lula, a conversa foi sobre a desigualdade social no mundo. A agência AFP informou que a Santa Sé não vai divulgar um comunicado oficial devido ao caráter privado da reunião.
Pode ser que o encontro não tenha consequências práticas mais importantes, mas é inegável a simbologia da foto de Lula sendo abençoado pelo Papa. E mais simbólico é o seu ocultamento. Uma visita às capas dos jornais brasileiros desta sexta (14) e você percebe que apenas a Folha de S. Paulo colocou a foto na capa.
Entende-se que um jornal não deva se prestar ao papel de assessoria de imprensa de políticos, mas se tratava do encontro de um ex-presidente brasileiro com o Papa. O Jornal Nacional de quinta (13) dedicou 49 segundos para falar sobre a visita, sendo que 32 deles para falar da situação jurídica de Lula.
Se a mídia escondeu, a direita esperneou. O encontro serviu para que católicos conservadores aumentassem o tom contra o Papa Francisco, que já não goza de prestígio junto à direita. Já reportagem da publicação alemã Deutsche Welle avalia que o encontro tem repercussões simbólicas para o petista, que retoma sua imagem de líder internacional, influi na disputa de poder dentro da própria Igreja Católica e ainda sinaliza para uma tentativa do PT em reatar seus laços com as bases progressistas da Igreja.
9. Ponto Final: Nossa recomendações.
Como a esquerda brasileira morreu, por Vladimir Safatle. “O que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo”.
Como a ultradireita brasileira usou o Whatsapp. Mensagens direcionadas para grupos segmentados; disparo massivo de fake news off-line, para impossibilitar checagem; e até participação indireta da velha mídia. Dossiê inédito revela como operou a versão brasileira da Cambridge Analytics nas eleições de 2018 no Outras Palavras.
Ataques à jornalista da Folha são raio-x do bolsonarismo nas redes. Patrícia Campos Mello foi ofendida durante sessão da CPMI das fake news. A Folha de S. Paulo desmentiu rapidamente. Mas não adianta fact-checking, não adianta argumento. É um universo paralelo que invade o real na base do grito.
Pago por clique. Reportagem do UOL Tab sobre plataformização do trabalho, como os brasileiros que trabalham na Amazon Mechanical Turk alimentando inteligência artificial por demanda.
“Vamos acabar como mendigos”: Líder dos povos isolados critica “retórica idiota” de Bolsonaro e diz que missionário causará “desorganização social”
[Podcast] Enchentes: o fracasso da cidade do asfalto. Chuvas de verão escancaram concepção falida de planejamento urbano. Governos apostam em grandes obras de engenharia e esquivam-se do cerne: compreender ciclo das águas e apostar em justiça ambiental e direito à Habitação
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Edição: Leandro Melito