Desde a década de 1980, a França experimentou uma alternância de governos da direita clássica e da social-democracia. Todos adotaram políticas para atacar os direitos sociais das e dos trabalhadores.
O período do governo de François Mitterrand (1981-1995) marcou o início de 40 anos de sindicalismo "reformista" promotor de negociações sem ações coletivas de luta e sem unidade sindical. Este período gerou um enfraquecimento do sindicalismo em geral e também do sindicalismo de luta.
Durante esse período, as lutas sindicais foram travadas em condições difíceis de falta de unidade e dentro da estrutura de uma ideologia reformista, principalmente durante os governos de Mitterrand e Hollande (2012-2017).
Desde a grande greve de 1995 contra o projeto de reforma da Previdência, as principais ações populares contra os planos de regredir os direitos sociais foram perdidas, seja contra a reforma de El Komri nas relações de trabalho, seja contra a reforma do Código do Trabalho, ou contra o desmantelamento da SNCF (Companhia Ferroviária Nacional Francesa, na sigla em francês). Apesar disso, houve e há uma serie de vitorias locais ou setoriais.
A política socialdemocrata se perdeu no "social-liberalismo", adotando um funcionamento puramente institucional, apoiando-se tanto no presidencialismo quanto em um parlamentarismo isolado da base, no estado de bem-estar social como uma rede de segurança para políticas neoliberais, no paritarismo com os órgãos intermediários reformistas. O paritarismo é no qual empregadores e sindicatos trabalham juntos em reuniões de tomada de decisão em que as duas partes estão representadas.
Mas essas políticas entraram em colapso politicamente em 2017, vítimas tanto de seus traições quanto da nova conjuntura do capitalismo mundial, que se tornou cada vez mais agressiva e autoritária. Atualmente, o presidente Emmanuel Macron acelerou de maneira muito importante e brutal a supressão dos direitos conquistados pela população, com o objetivo de destruir a base do Estado social francês, construído em 1936 e consolidado em 1945.
Desde 2017, quebrou o Código do Trabalho, colocando os acordos com as empresas acima da legislação nacional e reformando as aposentadorias complementares -- administradas por fundos de pensão privados --, que resultaram em um aumento no valor e no período das contribuições; a reforma do seguro-desemprego está em andamento, com reduções nos benefícios e restrição dos critérios de acesso.
Macron também concedeu às empresas créditos públicos consideráveis, sob o pretexto de promover o emprego, mas sem obrigação de resultados. Reduziu os impostos patronais sobre os salários mais baixos, permitindo economias significativas para os empregadores, ao mesmo tempo em que aumentava os impostos indiretos (CSG), especialmente para aposentados, para compensar o déficit na Previdência Social. Os salários nos setores privado e público não aumentam há vários anos. O salário mínimo aumentou menos que a inflação e as aposentadorias não são indexadas ao custo de vida há dez anos.
As mudanças no Código do Trabalho provocaram a precarização de centenas de milhares de trabalhadores, tornando o contrato estável uma exceção no mundo do trabalho. Hoje a maioria dos e das trabalhadoras estão submetidos a um tipo de contrato curto e de fácil demissão, a uberização está aumentando, assim como também o trabalho por conta própria, mesmo em universidades.
O resultado geral é uma queda no padrão de vida da maioria dos franceses nos últimos quinze anos, precariedade em todos os níveis. A novidade é que a insegurança está se espalhando entre as classes médias. Dizem que as desigualdades sociais estão aumentando, mas essa não é a expressão correta: de fato, além da pequena camada de "proprietários" e seus aliados diretos, todos os estratos da população estão despencando. As classes médias são fortemente afetadas por essas políticas de austeridade e há um rebaixamento significativo entre gerações nas classes médias.
A primeira revolta, a dos coletes amarelos, mobilizou os trabalhadores empobrecidos das províncias contra as políticas econômicas e territoriais de abandono dos territórios periféricos, contra uma classe política distante e desdenhosa, demonstrando raiva. É nesse contexto, de insatisfação generalizada que o projeto de reforma previdenciária -- o pilar que restava do modelo francês de proteção social -- chegou.
Reforma da Previdência e luta nas ruas da França
O conteúdo deste projeto é particularmente agressivo e prevê:
- A destruição dos regimes setoriais de aposentadoria que diversas categorias de trabalhadores construíram de forma independente, drenando todas as reservas feitas ao longo das décadas, aumentando as contribuições. No caso dos advogados, o aumento previsto chega a 28%
- A mudança do método de cálculo. Para funcionários públicos, em vez de ser calculada sobre o último salário, a pensão seria calculada sobre a média de toda a carreira. Para o setor privado, atualmente a pensão é calculada a partir dos melhores 25 anos de salário. Com a reforma, será considerada a média de toda a carreira. Mulheres que interromperam suas carreiras para criar filhos, por exemplo, ou pessoas que tiveram períodos de desemprego, teriam a aposentadoria reduzida significativamente
- Outro elemento é a idade mínima para a aposentadoria integral. A reforma prevê aumentar de 62 a 64 anos. Se você se aposentar antes, será penalizado. Também estão previstos aumentos automáticas, dependendo de elementos econômicos e demográficos.
Muitos outros elementos nocivos estão incluídos neste projeto: várias profissões muito penosas ou fisicamente difíceis, como a dos coletores de lixo, dos trabalhadores da construção civil, dos dançarinos de ópera e dos auxiliares de enfermagem, perderão o direito ao regime de aposentadoria antecipada.
Expectativa de vida saudável
A expectativa de vida ainda está aumentando um pouco na França, mas a expectativa de vida saudável tem, em média, 62 anos e está em declínio. Isso significa que todas essas profissões podem nem atingir a idade da aposentadoria. A diferença na expectativa de vida entre um trabalhador e um gerente é de 13 anos!
Da mesma forma, as mulheres são vítimas importantes deste projeto: interrupções na carreira, diferenças nos salários entre homens e mulheres, significam que as aposentadorias das mulheres, com a reforma, serão mais desiguais do que agora.
Com a proposta de unificar todos os regimes, usando o argumento de querer "simplificar", a reforma do governo Macron propõe que o montante total gasto em aposentadorias vai ser limitado, independentemente da evolução do número de aposentados, em 14% do Produto Interior Bruto (PIB). Assim, essa soma fixa (que não é negociável) seria compartilhada entre um número crescente de aposentados, gerando mudanças nos cálculos a partir de um sistema de “pontos”.
De fato, as aposentadorias já não seriam calculadas a partir de um percentual do salário, senão de acordo com um número de pontos acumulados durante a carreira e multiplicados pelo valor outorgado ao ponto, que é o resultado da divisão da quantia disponível nos 14% do PIB pelo número de pessoas aposentadas.
Por um lado, trata-se, portanto, de um montante limitado, que seria dividido em um número crescente de pessoas, o que levaria automaticamente à queda de cada beneficio; por outro lado, esse cálculo escaparia ao poder parlamento, porque seria automático. Em síntese, é o triunfo da legitimidade do mercado sobre a legitimidade política, que é uma forte tendência do capitalismo, que parece prescindir da política.
Se a reforma responde às lógicas do mercado pelo seu funcionamento, também pelas esperáveis consequências. O afogamento do sistema público acabará beneficiando os interesses dos fundos de previdência privados, ao que muitas pessoas acabaram recorrendo em forma paralela por obter baixíssimo retorno das aposentadorias. A reforma, desta forma, dá sinais muito favoráveis à tendência da capitalização privada e ao lucro dos banqueiros e asseguradoras. Fica evidente quem ganham e quem perde.
Vanguarda de protesto
Em setembro passado, assim que esse projeto foi anunciado, a histórica vanguarda da classe trabalhadora francesa, os ferroviários e os trabalhadores do metrô de Paris, anunciaram uma grande greve para o dia 5 de dezembro. Essas profissões são diretamente atingidas, pois perderiam seu plano de pensão conquistado por suas lutas históricas.
Mas também essas profissões estão na história das lutas sociais francesas, registradas principalmente no sindicalismo e com princípios de defesa dos direitos sociais para todos e todas. Estes trabalhadores e seus sindicatos, com a Confederação Geral do Trabalho (CGT) à frente, demonstraram uma grande consciência de classe ao se prepararem por meses para uma greve longa e difícil, com a ideia de que ela deveria ser mantida até que as outras profissões entrassem em greve também.
E foi o que aconteceu: os trabalhadores ferroviários e o RATP (metrô de Paris) bloquearam o transporte por 56 dias, realizando a greve mais longa da história. Levou todo esse tempo, sem nenhuma resposta do governo, exceto o silêncio, adicionado à repressão de manifestações e às sanções de ativistas sindicais que bloquearam seus negócios, para a luta se espalhar.
Diante de um governo surdo e cego que se recusou a qualquer negociação, o movimento gradualmente se espalhou para outros setores, especialmente na indústria, como trabalhadores de portos, refinarias e indústrias químicas. Mas a duração excepcional do movimento também permitiu que toda a população se informasse e se desse conta da imensidão do declínio social que está em curso. A opinião pública permanece contra a reforma, apesar de todas as desvantagens para os usuários dos serviços paralisados.
A classe média também começou a se mover massivamente. Os professores primeiro, porque estão entre os grandes perdedores do projeto, e também porque lutam contra um projeto de reforma de bacharelado há meses. Em seguida, advogados entraram massivamente na greve, assim como outras profissões liberais, como paramédicos, enfermeiros, fisioterapeutas.
O movimento de solidariedade financeira a favor dos grevistas também teve um alcance inigualável: os fundos de solidariedade atingiram a quantia de 4 milhões de euros, apenas entre os fundos conhecidos.
Tudo isso aponta para uma coisa muito importante: o governo falhou na batalha ideológica de fingir que não há alternativa a não ser aumentar a idade da aposentadoria e diminuir a quantidade de pensões.
Macron, enquanto defensor do poder das finanças, tem como principal missão desmontar o modelo de seguridade social francês, único na Europa, se não do mundo. Mas a maioria dos franceses rejeita uma reforma, o que resulta crucial para os interesses financeiros e para as políticas resultantes de Maastricht.
Esta grande greve marca o retorno do sindicalismo de luta e a vontade de transformação social na França. A juventude também está presente em grande número nas ruas. E o empobrecimento da classe média e sua entrada na luta social toram uma possível a evolução do engajamento das forças sociais no país.
Edição: Rodrigo Chagas