Todos “Nãos” travados na garganta serão libertados pelas centenas de milhares de vozes dos foliões
Há muitas maneiras de dizer “Não”. As ruas, durante 2019, disseram “Não” muitas vezes. Com marchas, atos públicos, manifestações, ocupações, protestos.
Agora, no começo de 2020, vão dizer novamente “Não” mas de outra e mais irreverente maneira. Vão dizer “Não” nas ruas, praças e avenidas do Brasil. Vão dizer “Não” com um sorriso ou um riso imenso nas caras alegres. É o que prometem.
É possível dizer “Não” a plenos pulmões, debaixo do trovejar de tambores, repiques, tamborins, reco-recos, chocalhos, cuícas, agogôs, pandeiros e – vejam só que nome mais adequado para os tempos que vivemos - caixas de guerra...um instrumento que veio das antigas batalhas para alimentar a percussão do guerreiro Carnaval de 2020.
E é o que vai acontecer nestes dias de fevereiro que atravessamos. No Rio, a Estação Primeira de Mangueira, por exemplo, dirá “Não” com versos assim:
Eu sou da Estação Primeira de Nazaré/ Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/ Moleque pelintra no buraco quente/ Meu nome é Jesus da Gente/ Nasci de peito aberto, de punho cerrado/ Meu pai carpinteiro, desempregado/ Minha mãe é Maria das Dores Brasil (...)
Sua concorrente, a Portela, responderá:
Borduna, tacape e ajaré/ Índio pede paz mas é de guerra/ Nossa aldeia é sem partido ou facção/ Não tem bispo, nem se curva a capitão”. E a São Clemente repicará: “Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu/ E o país inteiro assim sambou/ Caiu na fake news.
Mas não vai ficar só nisso. A Mocidade Independente de Padre Miguel avançará no sambódromo com um samba-enredo que traz o seguinte desafio:
Brasil/ Enfrente o mal que te consome/ Que os filhos do planeta fome/ Não percam a esperança em seu cantar”.
E ainda:
É hora de acender/ No peito a inspiração/ Sei que é preciso lutar/ Com as armas de uma canção/ A gente tem que acordar/ Da lama nasce o amor/ Quebrar as agulhas que vestem a dor.
E a Unidos de Vila Isabel responderá
Sou eu/ Mais um Silva pau de arara/ Sou barro marajoara/ Me chamo Brasil.
Nos temas de cada escola, repetem-se palavras como “dor”, “sofrimento”, “luta”, “guerra”, “resistência”, “esperança”. Também, entremeados nas canções, fulguram os deuses negros que a intolerância dos fanáticos persegue nas periferias pobres do país: Oxóssi, Oxum, Exu, Olorum, Mutalambô, Nanã, Obá...Outra forma de também dizer “Não”.
Mas há outros tipos de “Não”, mais petulantes e audaciosos. Gritados, cantados, debochados, gargalhados. Todos serão ditos e todos precisam ser ditos.
Chegarão embalados pelas centenas de milhares de vozes dos blocos carnavalescos. No asfalto, então, brilhará a implacável verve das marchinhas, dispostas a castigar os personagens que promovem a escuridão, caso do ministro Abraham Weintraub:
Virei chacota/Na Internet/Depois de 1 erro/Ter cometido/Se eu tivesse estudado Paulo Freire/Isso não teria acontecido(...)
Ou a ministra Damares Alves e sua cruzada pela virgindade:
“Quem já deu, já deu…Quem não deu não vai dar mais/Não vai Damares/ Não vai Damares”.
Serão “Nãos” envoltos em troça e ironia. Haverá também aqueles mais secos e ríspidos, como o “Não” do compositor Zeca Baleiro. Em Escória, ele canta assim:
Vou lhes dizer o que é política/O vagão de lixo passa/ E o trem da história fica/Vou lhes dizer o que é arte e cultura/Não vai nem crescer capim/ Sobre vossa sepultura(...)
Todos os “Nãos” travados na garganta serão libertados. Na avenida, a Mangueira cantará
Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão.
Edição: Leandro Melito