O Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes) denunciou o programa Cidade Alerta, da TV Record, ao Ministério Público Federal.
O Intervozes afirma em representação encaminhada à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão que a emissora e o programa violam as normas da radiodifusão brasileira, ao transformar em espetáculo de audiência o drama de uma família vítima de violência.
Primeiro a emissora transforma em “atração televisiva” a selvageria do feminicídio. Depois explora o caso da morte da jovem Marcela, de 21 anos, assassinada pelo namorado Carlos Pinho dos Santos, de 26 anos.
No momento da revelação da morte da jovem, desaparecida desde o dia 8 e transformada em uma espécie de “série de suspense policial” pelo Cidade Alerta há uma semana, a tela foi dividida para exibir o apresentador Luiz Bacci, uma foto da jovem e a imagem da mãe dela, Ana – que desmaia ao ser informada pelo advogado do assassino sobre a confissão de Carlos.
Em artigo publicado na revista CartaCapital, assinado pela coordenadora do Intervozes Maria Mello, o coletivo explica as ilegalidades praticadas pela Record e pelo o Cidade Alerta. Leia aqui a íntegra da representação e a seguir o artigo.
Cidade Alerta: Quando a barbaridade toma conta da televisão brasileira. Por Intervozes
O desrespeito às leis brasileiras e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário pelos programas policialescos parece não ter limites. Nessa segunda-feira 17, mais um caso de violação dos direitos humanos e das normas que regem a radiodifusão no Brasil chamou a atenção e causou indignação nos telespectadores e internautas.
Enquanto entrevistava ao vivo Andreia, mãe da jovem Marcela que estava desaparecida desde o dia 8 deste mês, o apresentador Luiz Bacci, do programa Cidade Alerta (TV Record), comunicou que a filha havia sido assassinada pelo namorado em um crime de feminicídio. Isso pouco depois da mãe declarar ter esperanças de encontrar a filha viva.
A reação de Andreia, que chegou a desmaiar ao saber do ocorrido, foi transmitida pela emissora por cerca de 20 segundos. A transmissão só foi interrompida quando a mãe da vítima acordou do desmaio e começou a gritar.
O “Caso Marcela”, sobre o desaparecimento da jovem grávida, vinha sendo explorado pelo programa desde a terça-feira 11. O episódio ocorrido na segunda-feira 17 foi a quarta abordagem do caso no Cidade Alerta.
A repercussão negativa entre a audiência das opções tomadas pela produção e direção do Cidade Alerta levaram, ademais, a TV Record a excluir a referida cena da plataforma digital que arquiva sua programação, mais uma indicação do caráter violador da situação.
Representação no MPF
Nesta terça-feira 18, o Intervozes apresentou à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC – MPF) um requerimento solicitando providências legais para a responsabilização da TV Record por desrespeito e inadequação da emissora às normas vigentes para a radiodifusão brasileira e os direitos humanos, em âmbito nacional e internacional, durante a referida transmissão do programa Cidade Alerta.
O requerimento ressalta que a TV Record, concessionária de um serviço público, fere a Constituição Federal em relação ao direito à privacidade, à imagem e à intimidade dos indivíduos, bem como os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Lembra, também, que a Carta Magna veda a veiculação de conteúdos que violem os direitos humanos e façam apologia à violência. “No capítulo V, sobre a Comunicação Social, a Constituição afirma que as liberdades de expressão e de informação devem respeitar outros direitos fundamentais previstos na legislação em vigor”, destaca a peça.
Além disso, o documento aponta a previsão de responsabilização contida no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU em relação a abusos no exercício da liberdade de expressão. “Significa dizer, em síntese, que a liberdade de expressão deverá ser protegida sempre, mas poderá ser restringida e sancionada quando incorrer em abuso que cause uma violação a um outro direito humano”, pontua.
A representação evoca, ainda, o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que determina que “os serviços de informação, divertimento, propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão estão subordinados às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão, visando aos superiores interesses do País” e que “a liberdade de radiodifusão não exclui a punição dos que praticarem abusos no seu exercício”.
Cita também o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, que incluiu entre as obrigações de concessionárias e permissionárias a de “não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.
“O episódio aqui relatado vai, portanto, na contramão dos dispositivos que regulam a radiodifusão no Brasil e dos padrões internacionais que buscam assegurar a efetivação de tais direitos. Cabe destacar que o padrão de produção de conteúdo praticado pelos programas policialescos, especificamente o Cidade Alerta, atenta não só contra os diretamente envolvidos no ‘Caso Marcela’, mas a todos direta ou indiretamente impactados pela transmissão do programa”, finaliza o documento.
Mídia sem violações
Em 2015, o Intervozes lançou a campanha “Mídia sem violações” com o objetivo de receber denúncias de casos de violação de direitos na rádio e televisão brasileiras. À época, o programa Cidade Alerta já era campeão em violações e ocupava o primeiro lugar no Ranking de Violações de Direitos Humanos na TV Aberta.
A campanha surgiu como desdobramento do projeto Violações de Direitos na Mídia Brasileira, realizado pela Andi, em parceria com a PFDC, o Intervozes e a Artigo 19. O projeto acompanhou 28 programas policialescos durante 30 dias, em 10 estados brasileiros, totalizando cerca de duas mil narrativas com violações de direitos.
O estudo constatou mais de 4.500 violações de direitos de, pelo menos, 12 leis brasileiras e 7 tratados multilaterais. Ao todo, foram encontradas 8.232 infrações às leis brasileiras, 7.529 infrações a acordos internacionais e 1.962 desrespeitos a normas autorregulatórias nas matérias apresentadas.
Maria Mello é jornalista e coordenadora executiva do Intervozes.