Cinema

Artigo | Quando um nazista dirigia o Festival de Berlim, por Rui Martins

Não havia interesse político em se provocar uma crise na Berlinale, que o tempo transformara em festival de esquerda

Brasil de Fato | Berlim (Alemanha) |
Festival de Berlim começa nesta quinta-feira (20) - Foto: John MACDOUGALL/AFP

Enquanto, no Brasil, o presidente Bolsonaro não esconde seu namoro com o nazifascismo, a Alemanha de Angela Merkel faz questão de mostrar seu repúdio a qualquer tentativa de restauração da ideologia nacional-socialista de extrema-direita.

Foi o caso da anulação das eleições na Turíngia, onde seu partido, CDU, tinha vencido com os votos dos neonazistas do partido Alternativa para a Alemanha.

Foi também o caso, num âmbito artístico cultural de repercussão mundial, da anulação do Urso de Prata com o nome de Alfred Bauer, concedido há 33 anos pelo Festival Internacional de Cinema de Berlim.

Seria muito ingênuo imaginar não ter havido ninguém, nestes 75 anos depois do término da Segunda Guerra Mundial, que conhecesse o passado nazista de Alfred Bauer, homem de confiança de Goebbels no setor da propaganda e cinema.

Havia, sim, muita gente bem informada sobre o passado de Bauer – tanto que, em 1951, ao ser criado o Festival de Cinema em Berlim, houve protestos, tendo em vista seu trabalho no Reichsfilmkammer. Ironias da vida: foi um oficial americano judeu, Oscar Martay, quem convenceu as autoridades militares americanas a criar um festival internacional de cinema.

E foi também por influência dos americanos (começava a época da guerra fria entre EUA e URSS) que se ignoraram as acusações levantadas contra Bauer de ter participado do regime nazista.

Novas acusações surgiram em 1973, levantadas pelo historiador Wolfgang Becker, segundo as quais Bauer trabalhara na Diretoria de Cinema do Reich. As mesmas acusações ressurgiram feitas por Hans Blumenberg, em 1983; com Felix Moeller, em 1998; e com Tereza Dvorakova, mais recentemente, em 2008.

Foram ignoradas pela imprensa nacional e internacional: não havia interesse político em se provocar uma crise na Berlinale, que o tempo transformara num festival de esquerda.

Com o ressurgimento da ideologia nazista, as novas revelações do jornal Die Zeit chegaram, dessa vez, num momento politicamente adequado.

Uma história mal contada

Como nunca ninguém soube do passado nazista do criador do Festival Internacional de Cinema de Berlim? Foi um segredo bem guardado ou houve pessoas que preferiram não contar?

É uma história digna de um filme de espionagem – o criador e primeiro diretor do Festival Internacional de Cinema de Berlim, Alfred Bauer, tinha sido homenageado com a criação de um Urso de Prata com seu nome, destinado a um filme inovador. Isso em 1987.

Houve, portanto, 32 Ursos de Prata com o nome de Alfred Bauer até o ano passado. Doloroso foi descobrir que ele mantinha estreitas relações com o regime nazista de Hitler antes do fim da Segunda Guerra.

O impressionante é isso só ter sido descoberto em janeiro deste ano por investigações do jornal alemão Die Zeit, ou seja, 33 anos depois da morte de Alfred Bauer e 75 anos depois do fim da Segunda Guerra.

Em janeiro, a nova direção do Festival escreveu a todos que ganharam o prêmio com o nome de Bauer explicando a situação. Não se sabe se algum dos contemplados devolveu a honraria e se o Festival pretende manter o prêmio de inovação no cinema, mas com outro nome. Ele foi entregue a conhecidos cineastas, como o polonês Andrzej Wajda, o chinês Zhang Yimou, os franceses Leos Carax e Alain Resnais, além do realizador português Miguel Gomes, em 2012.

A lusofonia na Berlinale

Este ano, não há filme de Portugal na competição, mas um filme brasileiro, Todos os mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, sobre o racismo no Brasil. Do filme brasileiro participa a atriz portuguesa Leonor Silveira.

A surpresa poderá ser o filme Berlin Alexanderplatz, baseado numa novela antológica do autor alemão Alfred Döblin, escrita em 1929, cuja narrativa, envolvendo a classe operária e um assassinato, é comparada à de James Joyce e Franz Kafka. Já houve uma versão de Fassbinder feita em 1980.

Nesse filme, o ator principal é o guineense Welket Bungué, numa adaptação feita pelo realizador afegão-alemão Burhan Qurbani. Bungué, no filme vem da Guiné-Bissau e consegue chegar à Alemanha, onde luta para sobreviver. Existe uma grande expectativa em torno do filme.

Outros filmes brasileiros na Berlinale

Este ano o Brasil alcançou o recorde de filmes brasileiros que serão exibidos no Festival, ao todo 19 produções brasileiras serão exibidas ao longo do festival.

Na mostra Panorama , cujo tema principal é a situação dos imigrantes, foram selecionadas cinco produções brasileiras. 

Cidade Pássaro (Brasil / França), de Matias Mariani
Nardjes A. (Argélia / França / Alemanha / Brasil / Qatar), de Karim Aïnouz
O Reflexo do Lago (Brasil), de Fernando Segtowick
Um Crímen Comun (Argentina / Brasil / Suíça), de Francisco Márquez
Vento Seco (Brasil), de Daniel Nolasco

A mostra Geração, selecionou quatro produções brasileiras. Dedicada a retratos da infância e da juventude, os filmes dessa mostra são divididos entre Kplus, apropriados ao público infantil, e 14plus, voltados aos adolescentes.

Kplus

, de Ana Flávia Cavalcanti e Júlia Zakia

14plus

Alice Júnior, de Gil Baroni
Irmã, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes
Meu Nome É Bagdá, de Caru Alves de Souza

Para as mostras  Forum e Forum Expanded, dedicadas ao cinema experimental, foram selecionadas sete produções brasileiras.

Forum

Vil, Má (Brasil), de Gustavo Vinagre
Luz nos Trópicos (Brasil), de Paula Gaitán
Chico Ventana También Quisiera Tener un Submarino (Uruguai / Argentina / Brasil / Holanda / Filipinas), de Alex Piperno

Forum Expanded

Apiyemiyekî? (Brasil / França / Holanda / Portugal), de Ana Vaz
Jogos Dirigidos (Brasil), de Jonathas de Andrade
(Outros) Fundamentos (Brasil), de Aline Motta
Vaga Carne (Brasil), de Grace Passô e Ricardo Alves Jr.
Letter From a Guarani Woman in Search of the Land Without Evil (Brasil), de Patricia Ferreira Pará Yxapy

Na mostra Encounters, nova mostra competitiva consagrada a propostas estéticas inovadoras, será exibido Los Conductos, de Camilo Restrepo (coprodução Colômbia, França, Brasil)
 

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de LisboaCorreio do Brasil e RFI.

Edição: Leandro Melito