O governo de extrema-direita da Índia poderá ter carta branca para acessar dados de 400 milhões de usuários de redes sociais a partir de março. O Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais, que abre essa brecha, foi elaborado pelo Ministério da Tecnologia da Informação e está sob análise em um comitê parlamentar conjunto desde dezembro. Segundo informação de bastidores revelada pela agência Bloomberg, as novas regras serão publicadas nas próximas semanas e não haverá “grandes mudanças” em relação ao projeto original.
A Índia possui 1,3 bilhão de habitantes, dos quais 500 milhões acessam a internet e 400 milhões têm contas em redes sociais como Facebook, Twitter, Youtube e Whatsapp.
O primeiro-ministro Narendra Modi, do Partido do Povo Indiano (BJP), está no segundo mandato e tem maioria no Parlamento.
:: Acesse o projeto na íntegra (em inglês) ::
Onde está a brecha
Canais oficiais de comunicação do governo têm ressaltado os supostos avanços promovidos pelo projeto de lei. Por exemplo, companhias que coletam dados pessoais por meio da assinatura de termos devem se restringir a uma finalidade específica e só podem agir com o consentimento expresso do indivíduo. O projeto também estabelece uma Autoridade de Proteção de Dados para impedir o uso indevido de dados pessoais.
No entanto, o próprio texto relativiza essas garantias de privacidade em seu capítulo 8, Seção 35, ao permitir que agências governamentais ignorem as regras das seções anteriores nos seguintes casos: “a) interesse da soberania e integridade da Índia, segurança do Estado, relações amistosas com Estados estrangeiros estados ou ordem pública, e (b) para impedir qualquer ofensa relacionada”. Quem deve avaliar o cumprimento desses critérios, com poder de isentar agências governamentais de respeitar a privacidade dos usuários, é o próprio governo.
Nesses casos, aplicativos de mensagens com mais de 5 milhões de membros seriam obrigados a quebrar o sigilo de dados de internautas a pedido de qualquer agência do governo, sem necessidade de mandado ou ordem judicial.
O projeto também prevê que as empresas passem a rastrear postagens sob as ordens do governo, com prazo de até três dias para ceder os dados solicitados. Outra exigência é que os registros das ações dos usuários nas redes fiquem disponíveis para consulta das agências indianas por, no mínimo, 180 dias.
Reações
Ativistas em defesa da segurança digital afirmam que o Estado deveria se preocupar em proteger a liberdade e o direito à privacidade dos indivíduos, e não em se apropriar dos dados.
O Movimento de Software Livre da Índia (FSMI, na sigla em inglês) acrescenta que os critérios para avançar sobre os dados de usuários de redes sociais não foram devidamente esclarecidos, o que daria margem para o governo utilizar as informações “para seus próprios fins”.
O Centro de Direito da Liberdade de Software (SFLC) publicou um relatório sobre o projeto e concluiu que ele “aprimora efetivamente os poderes de vigilância do governo e concede ao Estado maior autoridade para acessar dados pessoais”.
A Associação Indiana de Internet e Telefones Móveis, que reúne representantes do Facebook, da Amazon e do Google no país, alertou em nota que uma eventual aprovação do projeto “violaria o direito à privacidade reconhecido pela Suprema Corte”.
Contexto
O Projeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais é aguardado na Índia em meio a questionamentos ao primeiro-ministro Narendra Modi, que vê a economia desacelerar e é acusado de autoritarismo contra opositores e minorias religiosas. Parte dessas críticas está relacionada a tentativas de controle e monitoramento das ações dos cidadãos na internet.
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Em janeiro deste ano, a revista britânica The Economist publicou uma reportagem de capa com a manchete “Índia intolerante”, em referência à nova de lei de cidadania (CAA, na sigla em inglês) que discrimina a população muçulmana. Desde dezembro, 28 pessoas foram assassinadas ao se manifestarem contra essa medida, que abre caminho para a construção de campos de detenção para muçulmanos que não conseguirem comprovar que vivem no país há mais de 11 anos.
Há duas semanas, o primeiro-ministro ordenou que policiais se infiltrem em grupos de Whatsapp de estudantes universitários para prevenir “ações que ameacem a integridade nacional”. O movimento estudantil está na linha de frente dos protestos contra a CAA.
Modi também revogou a autonomia constitucional da parte da Caxemira controlada pela Índia no ano passado. O território, na região do Himalaia, também é reivindicado pelo Paquistão e foi o motivo de guerras entre os dois países. Entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020, o governo cortou o acesso a internet na região “por razões de segurança”.
Desde 2012, o governo da Índia suspendeu 400 vezes o sinal de internet em áreas de conflito ou de protestos massivos da oposição. Segundo a organização Access Now, especializada em direitos digitais, 134 dos 196 cortes de internet por governos no mundo em 2018 vieram da Índia – em 2019, foram 90 casos. Os mais recentes foram nos estados de Assam e Meghalaya, que registraram protestos massivos contra a nova lei de cidadania.
Edição: Rodrigo Chagas