Impropérios do presidente e desempenho pífio do governo também são temas do Ponto
A semana que começou com sinais de forte oposição ao governo Bolsonaro, em razão da greve dos petroleiros e até mesmo por parte de governadores e congressistas, termina com aquele indefectível cheiro de farda no ar. Vamos tentar entender como chegamos até aqui e quais caminhos o país pode tomar depois que terminar o Carnaval.
Trilha desta edição: A esperança brilha mais na escuridão, diz o samba-enredo da Mangueira.
1. Quando o Carnaval chegar. Um dos motivos que levou o governo ao destempero, embora não necessariamente o mais importante, foi que nas últimas três semanas os petroleiros realizaram sua maior mobilização desde 1995, levando o mercado a temer o risco de desabastecimento de combustíveis, o que só virá a acontecer se a greve durar mais tempo. Mas ela foi suspensa temporariamente para que, nesta sexta (21), os sindicatos participem da negociação mediada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde a categoria trava uma batalha específica contra o ministro Ives Gandra Martins Filho, um aliado antigo do bolsonarismo.
Uma decisão do ministro considerou a greve dos petroleiros ilegal, atendendo a pedido da Petrobras, também autorizada a tomar "medidas administrativas cabíveis", como corte de salários, sanções disciplinares e demissão por justa causa. A decisão passa solenemente por cima do direito de greve. No TRT do Paraná, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) conseguiu uma decisão provisória que suspende as demissões na Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados (Fafen). Depois das manifestações de estudantes contra cortes na educação em 2019, é a greve de petroleiros que vem dando ânimo para a oposição ao governo.
Além do tempo de duração, o medo do governo é que os petroleiros ganhem o apoio de um setor da base governista, mas frequentemente descontente, os caminhoneiros. A Associação Nacional dos Transportadores Autônomos do Brasil (ANTB) declarou apoio total à greve dos petroleiros e caminhoneiros chegaram a realizar uma manifestação na entrada do porto de Santos (SP) na segunda-feira (17). Eventual crescimento e sucesso dessa greve pode motivar mobilizações de outras categorias, como na área da Educação, como veremos a seguir.
2. Caso Adriano: bateu o desespero? Se Bolsonaro parece acuado, vendo uma greve de petroleiros crescer e a economia patinar, nada vem tirando mais do sério o bolsonarismo do que as possíveis revelações sobre a morte de Adriano da Nóbrega. E o estilo bolsonarista é atacar para se defender, com muita desinformação e acusações sem provas, construindo uma narrativa ambígua para se descolar do miliciano.
Bolsonaro acusou o governador petista Rui Costa, que mordeu a isca, e também insinuou o envolvimento do PSOL na morte do miliciano, além de anunciar abertamente que está tentando intervir nas investigações, numa declaração de cair a República – se vivêssemos em outros tempos. A principal polêmica gira em torno da perícia sobre o corpo de Adriano. Um novo exame foi determinado pela Justiça da Bahia na terça (18). Enquanto isso, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido/RJ), que quando deputado empregou até a mãe do miliciano, chegou ao ponto de publicar em suas redes sociais o vídeo do que seria a autópsia do corpo, cuja veracidade não é confirmada, para dizer que Adriano teria sofrido tortura antes de morrer.
Na quarta (19), foi a vez de o advogado da família Bolsonaro defender a honestidade do miliciano, atualizando as definições de bandido de estimação. Além da perícia no corpo, o que tira o sono da família Bolsonaro são os celulares que estavam com Adriano e agora serão periciados no Rio de Janeiro. O medo, manifestado pelo próprio Bolsonaro, é de eventuais mensagens forjadas. “Bem estranhas as preocupações desse presidente da República”, escreve Helena Chagas. Paralelamente, deputados bolsonaristas do Rio de Janeiro protocolaram um pedido de impeachment contra o governador Wilson Witzel. O motivo seria um esquema de grampos e dossiês contra deputados, mas um pano de fundo importante é a acusação de que o governador, hoje adversário de Bolsonaro, agiria nos bastidores para envolver a família presidencial no caso Marielle Franco.
3. Metralhadora giratória. Nem tudo é cortina de fumaça no bolsonarismo, às vezes é só desespero e falta de caráter. Mas o ataque de baixíssimo nível contra a repórter da Folha Patrícia Campos Mello mostra como a máquina de mentiras e difamações do bolsonarismo segue funcionando como na eleição de 2018, mesmo que aparentemente desidratada.
Bolsonaro, que por incrível que pareça é o presidente da República, repetiu a mesma mentira contada no depoimento de Hans River na CPMI das Fake News e propagada por seu filho Eduardo, seguindo um roteiro bem conhecido. Em tempo: a repercussão do insulto contra a jornalista teve o efeito de tirar o foco das redes sociais de uma das principais preocupações do presidente, a investigação sobre a morte do miliciano, como lembra o editor do site BuzzFeedBrasil.
O pesquisador David Nemer afirma que Flávio e Eduardo Bolsonaro administram pelo menos 20 grupos de WhatsApp que servem para a disseminação de fake news contra desafetos. Seriam pelo menos cinco mil pessoas recebendo material como os que insinuaram que a jornalista estaria se prostituindo para conseguir informações.
Antes tarde do que ainda mais tarde, o PT se deu conta de que precisa de uma estratégia digital renovada para encarar os desafios da comunicação em tempos de redes sociais, admitindo que este campo é dominado pela direita e a esquerda não consegue reagir. Como alerta Leonardo Sakamoto, mais grave do que fazer cortina de fumaça para esconder o desempenho pífio da economia, Bolsonaro segue testando as instituições, que por sua vez seguem um tantinho indignadas, mas um tantão imóveis. Inclusive os jornalistas e a imprensa, como lembra Rodrigo Ratier.
4. Minúsculo. Apesar do hábito do governo e da imprensa em comemorar os índices microscópicos da economia – no caso, o anúncio de que o país cresceu 1,2% em 2019 – economistas ligados ao mercado já têm rebaixado as expectativas de crescimento de 2,33% para 2,23%. Parece pouco, mas assim como as notícias de que R$ 419 milhões deixaram o país em um dia e a recuperação econômica é a mais lenta da história, significa que por maior que seja a paixão por Paulo Guedes, o mercado gosta mesmo é de lucro e não está vendo nenhuma possibilidade de que isso aconteça, inclusive está bastante incomodado que o governo não conseguiu barrar no Congresso um gasto maior com Educação.
A consequência é que um dos ministros inquestionáveis do governo Bolsonaro começa a ser questionado. Ou, como diz o jargão do futebol: Paulo Guedes está prestigiado. Durante a cerimônia de posse de novos ministros, Bolsonaro disse que o ministro da Economia cometeu “erros pontuais”, mas que ficará no governo “até o último dia”. Uma versão conta que, nos bastidores, Bolsonaro teria apelado para que Guedes permanecesse, depois de mais uma ameaça de demissão do ministro, mas outra versão diz que Bolsonaro estabeleceu julho como prazo máximo para Guedes mostrar trabalho e ressuscitar a economia, com a promessa de que o crescimento do PIB fique em pelo menos 2%.
No centro da polêmica, estaria a reforma administrativa, que deveria ir ao Congresso esta semana, mas foi suspensa temporariamente. Na ausência de resultados concretos, Bolsonaro tem apostado nas obras do ministério da Infraestrutura, um dos mais festejados. Mas a agenda é de quem está desesperado por mostrar alguma coisa: recentemente inaugurou 51 km da pavimentação de uma rodovia entre PA e MT e uma alça entre a Ponte Rio Niterói e a Linha Vermelha no Rio.
5. Ataque contra as universidades. A situação é particularmente grave para as universidades e institutos federais, para quem o governo transferiu o ônus de cortes nos orçamentos, aniquilando o orçamento do MEC de R$ 4,25 bilhões para R$ 2,20 bilhões. O resultado são as suspensões de concursos e de pagamentos de auxílios. Ao relacionar as despesas de pessoal ao status atual do orçamento, um ofício do MEC ameaça os reitores, que podem responder legalmente se não obedecerem à determinação do Ministério. “Não é possível, por meio de um ofício, dizer que os reitores devem descumprir a lei”, protesta o reitor da UFPEL Pedro Hallal, lembrando que os servidores podem questionar na justiça as medidas do tal ofício. Vale lembrar que já no ano passado a Educação foi um setor que sofreu cortes duros. As bolsas Capes, por exemplo, atingiram principalmente os cursos de Engenharia, Educação e Medicina.
Proporcionalmente, o Nordeste foi a região mais atingida pelo cortes das bolsas. Mas a prova de que a questão não é apenas ideológica é que o governo federal repassou 33% a menos no orçamento para creches e pré-escolas em 2019. Mesmo com a pior avaliação entre os ministros do governo, Weintraub se vangloria de ter costas quentes com a família presidencial, o que lhe autoriza a continuar cometendo barbaridades, como abrir procedimento disciplinar administrativo contra trinta professores da Universidade Federal Fluminense, por terem votado no Conselho Universitário pelo aumento nos vencimentos de funcionários aposentados, há 12 anos. Entidades que representam servidores públicos federais anunciam uma greve para o dia 18 de março. Resta saber se o vigor da greve dos petroleiros dará algum impulso aos trabalhadores da Educação.
6. A obsessão pela Amazônia. Desde que o governo levou um puxão de orelha nos bastidores do Fórum Econômico em Davos, o ministro Ricardo Salles saiu do radar. O que não significa que tenha recuado nos seus planos de transformar a Amazônia numa grande área de soja e mineração. Apenas passou a ser mais discreto. Na edição passada, comentamos sobre a reformulação do Conselho da Amazônia, agora sob tutela do general Mourão, e que apesar de um estatuto insípido, herda atribuições que estavam no Ministério do Meio Ambiente. Mourão, aliás, conta com a ajuda de Sérgio Moro para esvaziar outras pastas e atribuições do MAM, em especial o poder de fiscalização do IBAMA e do ICMBio.
O tema da fiscalização e do licenciamento ambiental é um daqueles que os liberais apoiam o governo sem piscar mandando às favas qualquer constrangimento com o mau comportamento de Bolsonaro. No caso, o projeto de Kim Kataguiri (DEM), em cima da proposta do governo, retira esta responsabilidade do ICMBio e permite que cada Estado defina como fazer o licenciamento ambiental, inclusive se quiser dispensar os estudos de impacto. Obviamente a redução da burocracia se dará na mesma velocidade da redução da floresta. A propósito, foi há pouco mais de um ano e deveria estar fresco na memória, mas foi o afrouxamento das leis ambientais que gerou a tragédia de Brumadinho (MG.
Como explica o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a escalada bolsonarista tem como pano de fundo a aliança com os evangélicos, o grande capital e os militares, que defendem a ocupação da Amazônia e veem nos indígenas uma ameaça à soberania nacional.
7. Impeachment ou golpe! Chegamos ao final da semana com uma greve dos petroleiros de razoável impacto, críticas cada vez mais fortes sobre a ausência de resultados na economia, a reação até de setores conservadores contra os ataques à imprensa e um cadáver literalmente na gaveta. Agora, resta falar sobre os possíveis desdobramentos deste cenário.
Até jornais como o Estadão – aquele da “escolha muito difícil” entre Haddad e Bolsonaro – já acham que a quebra de decoro no ataque à jornalista já teria entornado (novamente) o caldo do impeachment. Antes que você comece a soltar confetes, cabe lembrar que estamos no governo civil mais militar de todos os tempos, com nove generais ocupando ministérios, três deles no Planalto. “Em nenhum governo anterior, os militares jogaram tão abertamente o peso da instituição sobre um mandato”, lembra Thomas Traumann.
Para Bolsonaro cair, dependeria do partido militar soltar a sua mão. Segundo Traumann, os militares que agora assumem como seu o governo Bolsonaro não têm ilusões de mudar o presidente e preferem influenciar de dentro para que o fracasso de um governo tão militarizado não caia na conta das Forças Armadas.
A análise do Instituto Tricontinental é ainda mais grave: há unidade entre militares da reserva e da ativa e a participação no governo é um projeto de ocupação em massa do Estado, além de barrar o “marxismo cultural” e a volta do petismo. Na “base armada” do governo também estão as polícias militares, onde Bolsonaro sempre teve muita popularidade entre soldados e baixo oficialato.
Na revista Piauí, dois especialistas em segurança pública se perguntam se é apenas coincidência que em menos de duas semanas as polícias da Bahia e Ceará, governados por petista, tenham se rebelado contra os seus governadores. Lembrando que em vários estados a questão salarial tem colocado os policiais em conflito com os governos. No caso cearense, que terminou com o senador Cid Gomes baleado após tentar romper o motim policial a bordo de uma retroescavadeira, a relação é bem clara: uma das lideranças do motim é um sargento vereador bolsonarista e um ex-deputado também bolsonarista foi flagrado dando dinheiro para mulheres que teriam engrossado o motim.
Segundo levantamento do Estadão, a bancada da bala no Congresso está incentivando protestos policiais em 12 estados, em sua maioria do nordeste e governados pela oposição. “O governo está apostando de forma muito clara numa escalada da tensão política. Nesse cenário, a mobilização das forças policiais, o incitamento ao amotinamento é mais um capítulo muito preocupante desse processo”, avalia o professor Claudio Couto (FGV).
O temor de que policiais sejam insuflados contra os Executivos locais por apoiadores das franjas mais radicais do bolsonarismo, quando não por integrantes do próprio governo federal, aumentou a mobilização dos governadores. Atiçados pelo general Heleno, os bolsonaristas raiz convocam uma manifestação para o dia 15 de março, um dia que coincidentemente marca a posse de Costa e Silva em 1967 e o fim da ditadura militar em 1985. Enquanto a grande imprensa cogita o impeachment, talvez o cenário mais provável seja outro, o que nos leva à questão: uma nova ditadura está batendo a porta?
Ponto Final: Nossa recomendações de leitura
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Edição: Rodrigo Chagas