A última cena do filme "Todos os Mortos", exibido na competição internacional do Festival de Cinema de Berlim, mostra uma dolorosa realidade: muita coisa mudou, a escravatura terminou há mais de um século, porém a sociedade brasileira praticamente mantém a mesma estrutura social racista.
O momento de se mudar tudo, explicou um dos diretores do filme, Caetano Gotardo, passou sem ter se concretizado. Agora, a tendência vai na direção de uma estratificação, lembrando de certa forma a África do Sul. Com o agravante de uma polarização religiosa entre os evangélicos, consumindo um cristianismo modelado e exportado pelos americanos e as crenças trazidas da África pelos escravos.
Uma síntese do filme
Dez anos depois de terminada a escravatura, a família Soares, formada por três mulheres, se sente perdida em São Paulo, após a morte de sua última empregada doméstica.
A família, que já possuía plantações de café, está agora à beira da ruína e luta para se adaptar. Ao mesmo tempo, a família Nascimento, que trabalhava como escrava na fazenda Soares, agora se vê à deriva em uma sociedade em que não há lugar para negros recentemente libertados.
As personagens do filme são a senhora idosa acostumada a comandar, sua filha freira tentada por idéias blasfemas, a irmã pianista, cuja mente é habitada pelo passado sombrio de sua comunidade e uma ex-escrava, cuja força de vontade a guia para para uma vida melhor.
Entrevista coletiva
No encontro com a imprensa, os diretores explicaram a criação do filme, aproveitando para criticar a atual situação brasileira, onde o governo de extrema-direita ataca cinema e artistas, usando mesmo da censura.
Marco Dutra e Caetano Gotardo falaram sobre a ideia do filme, concorrente ao Urso de Ouro no Festival de Berlim. O historiador Salloma Salomão, que contribuiu com as pesquisas, também participou da sabatina. Eles reponderam sobre qual foi o ponto de partida para o roteiro do longa:
Marco Dutra - Tudo começou em 2012, eu escrevi a história com a participação de Caetano. Algumas versões, que se mantiveram no filme, já se encontravam nesse primeiro texto, como as duas famílias e as profundas mudanças que iriam ocorrer nas suas vidas, alguns anos depois da abolição da escravatura e da proclamação da República.
Queríamos retornar a essa época para mostrar as mudanças e para analisar se tinham ou não funcionado. Caetano me passou muitas boas sugestões e decidimos que seríamos co-diretores do filme. Já nos conhecíamos desde 1999 e decidimos que o filme seria nossa primeira realização conjunta.
Caetano Gotardo - Quando começamos a imaginar esse projeto, refletimos sobre a estrutura de nossa sociedade hoje. Era 2012 e, nestes oito anos, essa estrutura não mudou. Nessa época, o Brasil poderia ter tomado outro rumo e organizado a sociedade de maneira diferente, Surgiu a ocasião para isso, mas ela não foi utilizada. A estrutura da sociedade continuou a mesma.
Portanto, o que nos interessava era uma reflexão sobre a evolução da sociedade brasileira com a abolição dos escravos até os dias de hoje. Há, portanto, épocas que se sobrepõem no filme no nível visual, dramaturgia e música.
Essa sobreposição era nossa principal ideia. Quando se pensa na constituição da sociedade brasileira, é preciso se pensar na noção de raça, não necessariamente na negritude, mas igualmente na branquitude ou no fato de ser branco. Porque existe essa ideia de que ser branco é ser neutro.
Em geral as pessoas pensam que os brancos são a classe média, mas isso é falso. Quando lemos uma história, um fator dominante é se o personagem é branco. Refletimos sobre esse "estatuto" e sobre as relações interraciais.
Houve muita pesquisa e nestes anos seguimos com atenção todos os debates sobre o sexo, classe e raça. Debate que está presente hoje num nível ainda mais complicado. E todos que participaram a seguir do projeto puderam contribuir num clima de cooperação e colaboração.
Salloma Salomão - Acho que a maneira como esse filme descreve a situação é uma nova visão ou maneira de perceber a sociedade brasileira. Uma espécie de reflexo ou espelho da sociedade brasileira, mas igualmente uma projeção dessa sociedade no mundo.
O cinema brasileiro sempre projetou duas imagens ou estereótipos da sociedade brasileira. A primeira é a de que vivemos numa sociedade harmoniosa, a segunda é a de que vivemos numa sociedade violenta. Na verdade, tanto uma como a outra são verdadeiras.
O Brasil é um país racista que conhece a coabitação entre as diversas raças. Tudo isso num universo social de grande pobreza e mesmo indigência. O filme descreve um momento crucial da sociedade brasileira de hoje, num momento de caminhos cruzados. Encontramos ainda hoje, na sociedade brasileira, elementos componentes da época da escravatura que fazem parte da vida dos brasileiros. Essa intimidade não se vê nas ruas. Quando um pesquisador entra na casa de aristocratas constata essa intimidade.
Artistas são alvo de ataques
Ao responder a uma pergunta sobre a situação atual do cinema brasileiro, Caetano Gotardo fez um resumo importante. "Existe hoje no Brasil uma tentativa diária para se conter a força expressiva da arte brasileira. Os artistas estão sendo alvos de ataques diretos, de notícias falsas, perseguições pessoais ou perseguições a suas obras e circulação de mentiras", avaliou.
Gotardo acrescentou: "É muito importante haver aqui em Berlim todos esses filmes brasileiros, é muito importante o cinema brasileiro estar no cenário internacional e inclusive no cenário nacional, porque isso nos dá uma sensação da força que tem a arte brasileira e nos dá energia para lutarmos contra esses ataques cotidianos, inclusive com acenos à censura em certos temas e censura contra certos artistas.
Tudo isso estamos vivendo hoje e nossa presença aqui tem uma força simbólica muito grande, de resistência e de luta, para continarmos vivendo do nosso trabalho artístico", concluiu.
Em defesa da arte
Durante a entrevista, houve uma vibrante declaração em Berlim, da produtora Sara Silveira, em defesa da arte brasileira.
"Hoje temos uma problema enorme com um presidente de extrema-direita que ataca nossa cultura, nossa educação e nosso audiovisual. A indústria brasileira de cinema tem 500 mil pessoas que com ela trabalhavam e trabalham direta ou indiretamente. Estamos sendo totalmente tolhidos, freados por um governo que não entende, talvez por lhe faltar inteligência. Já que são tão neoliberais porque não entendem que proporcionamos empregos, idéias, diversidade e, sobretudo, resistência".
Ainda sobre resistência, Silveira continuou: "Enquanto eu existir como mulher, eles vão ter de ouvir e ver os meus filmes. Vai ser difícil nos calar, visto a força que a gente tem. Eu não preciso de armas. Eu preciso de força, amor, coragem e momentos heróicos, para suportar o que estamos vivendo, nós de todas as raças, de todos os gêneros, os artistas que estão aqui gritando por liberdade, democracia e contra a censura".
*Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Paulo Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI (Rádio França Internacional).
Edição: Douglas Matos