Com críticas à corrupção, referências diretas ao governo de Jair Bolsonaro e celebração da diversidade, as escolas de samba que passaram pela Sapucaí nesta madrugada de segunda (24) para terça-feira (25) compartilharam um tema em comum: a exigência por justiça social. Uma homenageada da noite foi a cantora Elza Soares.
A São Clemente abriu a noite com um desfile irreverente e muitas críticas políticas. O humorista Marcelo Adnet, um dos compositores do enredo “O Conto do Vigário”, fechou a passagem da escola pela Sapucaí fantasiado de Jair Bolsonaro. Fazendo flexões e gestos de arma com as mãos, ele estava no alto de um carro alegórico adornado pelas fake news propagadas pelo capitão reformado. A bateria entrou vestida de laranjal, em alusão às suspeitas do uso de laranjas no financiamento da campanha eleitoral de Bolsonaro.
A partir de um acontecimento do século XVIII – em que um vigário enganou o sacerdote da igreja vizinha – a São Clemente se inspirou em notícias de golpes sofridos pela população encontrada em jornais antigos. Para tratar da atualidade, a escola trouxe um pastor que promete terrenos no céu e uma ala chamada Caixa Dois, com foliões fantasiados de presidiários – um desabafo sobre como a boa fé dos brasileiros é testada cotidianamente.
Brasil compartilhou, viralizou, nem viu!/ E o país inteiro assim sambou/ “Caiu na fake news!”
Diversidade e inclusão no espaço urbano
Duas escolas levaram à avenida enredos que falavam sobre a concepção e a construção de cidades mais inclusivas e diversas. Cada uma a sua maneira, Vila Isabel e Unidos da Tijuca transformaram em poesia carnavalesca a construção de sociedades mais justas.
A Vila falou sobre os 60 anos de Brasília, com o enredo “Gigante Pela Própria Natureza: Jaçanã e um Índio chamado Brasil”. Conduzidas por uma lenda indígena, a construção e a consolidação da capital foram mostradas sob a perspectiva dos diversos povos que formaram a cidade e da importância dessa diversidade.
“Onde nascem os sonhos”, enredo da Unidos da Tijuca, construiu o Rio de Janeiro ideal no desfile. A escola mostrou uma cidade inclusiva, justa e humanizada. Em entrevista ao Brasil de Fato, o historiador André Diniz – um dos compositores do samba – afirmou que foi proposital a escolha da letra em primeira pessoa, como forma de aproximar a comunidade do debate tratado na avenida.
“A sinopse da escola era sobre a história da arquitetura brasileira, passando pelas mazelas do Rio de Janeiro e pelo sonho de ter uma moradia mais digna, uma cidade mais justa. O nosso problema era que a gente não sabia se a comunidade ia cantar aquilo com pertencimento. A nossa sacada foi tentar fazer a comunidade perceber que aquela é a realidade dela. Quando a gente bota o samba na primeira pessoa, onde quem canta fala “Eu sou favela”, aí você tenta pegar o coração da pessoa.”
A minha felicidade mora nesse lugar/ Eu sou favela/ O samba no compasso é mutirão de amor/ Dignidade não é luxo nem favor
Benjamin de Oliveira e Elza Soares: arte do povo preto na avenida
A vida do primeiro palhaço negro do Brasil foi contada pelo Salgueiro. Benjamin de Oliveira, filho de uma escrava liberta e de um capitão do mato fugiu de casa, no interior de Minas Gerais, ainda criança para se juntar ao circo. A trajetória dele, que se tornou uma referência das artes cênicas do Brasil, foi contada com elementos que remetiam à luta do povo preto .
Na corda bamba da vida me criei/ Mas qual o negro não sonhou com liberdade?/ Tantas vezes perdido, me encontrei/ Do meu trapézio saltei num voo pra felicidade
Levada à avenida como uma deusa com origem no povo, Elza Soares foi homenageada pelo enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel. O desfile foi marcado por elementos que celebraram o empoderamento feminino.
Por meio da história da cantora, a escola cantou a vida de mulheres trabalhadoras. Um dos carros alegóricos listava os obstáculos que fizeram parte da vida da artista, comuns a muitas mulheres, entre eles a misoginia, o machismo e o racismo. A tolerância e o sincretismo das religiões foram celebrados na letra do samba e em outro carro, que trazia a frase “Exu te ama”.
Aos 90 anos, Elza fechou o desfile da Mocidade em um carro alegórico que exigia cultura, educação, saúde e respeito à diversidade. Uma faixa em letras gigantes avisava:
Nós não vamos sucumbir.
A rua é do povo
Exu também esteve presente no desfile da Beija-Flor, que fechou o último dia de Carnaval no Rio com uma celebração às ruas. Com alas e carros alegóricos que falavam sobre os caminhos e estradas percorridos pela humanidade, a escola ressaltou a todo o momento que a rua pertence ao povo.
O samba enredo também celebrava Exu. Nas religiões de matriz africana, a entidade é responsável por abrir passagens e permitir a comunicação. Na voz de Neguinho da Beija-Flor, Exu esteve presente como o protetor.
É bom lembrar, eu não estou sozinho/ Ê laroyê ina Mojubá/ Adakê Exu ôôô/ Segura o povo que o povo é o dono da rua
Edição: Vivian Fernandes