Quando escrevi aqui sobre a matéria do Fantástico a respeito das mulheres trans encarceradas, dizendo o quanto o programa de TV havia romantizado a prisão, sendo um desserviço mesmo para milhares de mulheres nas mesmas condições, muitas pessoas alegaram que o mérito da matéria era causar empatia para com essas mulheres, pois dificilmente são enxergadas.
Logo em seguida, a matéria ganhou mais repercussão. Uma das presas, a que recebeu o abraço carinhoso de Drauzio Varella, passou a receber milhares de cartas de solidariedade frente ao seu abandono no cárcere. Aparentemente, eu estava errado, mas não demorou também para alguém ir procurar saber o crime que aquela mulher tinha cometido, pois, afinal, parece óbvio, se uma pessoa está presa ao menos acusada de um crime ela deve ter sido.
Reviravolta, o ódio retorna ao seu lugar. A solidariedade, a empatia, some para dar lugar ao rancor tão presente ultimamente. O certo é que não adianta querer ou propagar empatia por outro ser humano se essa empatia está vinculada à doce ilusão de um ser humano só imagem, sem erros, sem história. A empatia é um investimento onde estão incluídos carne, osso, dor e decepção.
E mais, no caso da matéria em questão, estamos falando de um assunto dos mais delicados: a prisão; esse depósito de ódio, erros, violência e morte, reflexo de todos nós sociedade, um barril de pólvora de sentimentos, principalmente os piores entre nós seres humanos, não só de quem olha a prisão de fora, mas também entre os que a habitam.
A solidariedade àquela mulher trans se transformou em ódio e é bem capaz que se transforme também em perigo de morte, porque o preconceito e o estigma nós já sabemos que vai agravar. Perigo de morte que não é só no começo do encarceramento que essas mulheres sofrem, como pretendeu mostrar a matéria, perigo de morte sofrido por 99% delas durante toda a pena.
Mostrar a prisão como algo inclusivo foi um erro, porque isso é tudo que ela não é, a não ser que estejamos falando de inclusão nas facções. Dizer que uma pessoa prefere ficar presa a ser solta também foi fantasioso, verdadeiramente fantástico, mas distante da verdade.
O que eu defendi, e defendo, é que a prisão seja vista e abordada sempre como instituição do Estado que deve cumprir a lei, coisa evidente, mas que a prisão não faz. Há uma Lei de Execução Penal, a Lei 7.210/84, reformada recentemente, mas que em cada uma de suas páginas há pelo menos um artigo que não é cumprido. Ou seja, a lei que prevê a própria prisão é violada constantemente, razão pela qual venho repetindo: toda prisão no Brasil é ilegal.
A matéria do Fantástico passa ao largo dessa questão, aliás, camufla, disfarça a ilegalidade diária e evidente do cárcere. Claro que a questão trans é muito importante, mas nunca podiam abordá-la, como se diz normalmente, passando o pano na prisão. Se a sociedade é homofóbica, a prisão é triplamente homofóbica, pois ela, a prisão, é o reflexo da sociedade, um reflexo sempre distorcido para pior.
Aparentemente o que se quis foi demonstrar o abandono social a que estão submetidas aquelas mulheres, mas o abandono do Estado, dentro e fora da prisão, é um dos motivos desse abandono social, porque deveria ser o Estado, dentro e fora da prisão, o primeiro a promover o respeito e a inclusão dessas mulheres.
O tratamento hormonal negado àquelas mulheres, por exemplo, mas em nada criticado no Fantástico show da prisão, é garantido pelo SUS, sendo recomendado pelo Conselho Federal de Medicina pela Resolução CFM 2.265/2019, portanto obrigatório seja na prisão, seja em meio livre.
Não sei se é verdade ou mentira o que estão divulgando sobre os crimes cometidos por aquela mulher trans abraçada pelo médico. Ele, o médico, divulgou uma nota dizendo que essa questão não lhe interessava, pois, afinal, ele é médico e não juiz.
Ora, se aquela mulher já está presa, condenada, já há uma pena pelo que ela teria cometido, o fato já punido não interessa nem ao médico e nem ao juiz. Esse é um princípio básico de execução penal, o crime se transforma na pena, é a pena que é executada.
Se todas as vezes que se tratasse de um direito de um preso condenado fossemos procurar saber sobre o seu crime, ele seria punido duas, três, quatro, dez vezes pelo mesmo crime cometido, o que violaria princípios básicos de justiça.
Enfim, vincular o respeito ao encarcerado, seja que encarcerado for, à suposta empatia que ele possa produzir será sempre um erro. O respeito ao preso, seja que preso for, deve ser o respeito do cumprimento da lei, e para o preso basta o cumprimento da lei mesmo, o que invariavelmente não acontece.
*Luís Carlos Valois – Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal pela USP, pós-doutorando na Alemanha.