Mensagens trocadas entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF) mostram que a equipe liderada pelo procurador Deltan Dallagnol, que coordena a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, colaboraram secretamente com o Departamento de Justiça (Department of Justice, DOJ) dos Estados Unidos, que chegou a investigar esquemas de desvios de recursos na Petrobras em território americano, de acordo com Agência Pública e The Intercept Brasil.
Documentos do Ministério das Relações Exteriores brasileiro registraram o pedido de visto de pelo menos dois promotores do DOJ.
Ambos afirmaram que planejavam ir a Curitiba a fim de se reunir “com autoridades brasileiras a respeito da investigação sobre a Petrobras”, e que “o objetivo das reuniões é levantar evidências adicionais sobre o caso e conversar com advogados sobre a cooperação de seus clientes com a investigação em curso nos EUA”.
Não apenas dois, mas 17 estadunidenses viajaram para a sede do MPF em Curitiba, em outubro de 2015. Promotores e policiais dos EUA passaram dois dias em Curitiba assistindo a apresentações de procuradores brasileiros sobre delações premiadas na operação. Depois, mais dois dias em reuniões com advogados dos delatores.
Dallagnol até tentou manter sigilo, mas as visitas foram divulgadas pela imprensa. Foi quando o então ministro de Justiça José Eduardo Cardozo, do Partido dos Trabalhadores (PT), tomou conhecimento da vinda dos investigadores estrangeiros, quando estes já estavam em território brasileiro.
Foi então que o chefe do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) questionou Vladimir Aras, procurador responsável pela cooperação internacional na Procuradoria Geral da República, sobre a visita de investigadores americanos.
Em reação, Dallagnol convenceu Aras a limitar as informações que passaria ao DRCI, revelam as trocas de mensagens obtidas pelo Intercept.
“Os contatos estão sendo feitos de acordo com as regras nacionais e internacionais. Sugiro que sugira que o DRCI pare de ter ciúmes da relação da SCI/MPF com outros países rs”, escreveu Dallagnol.
Ao contrário do que o procurador da Lava Jato em Curitiba afirmou, no entanto, tratados e acordos internacionais foram violados. O tratado de assistência legal mútua assinado pelos dois países (Mutual Legal Assistance, MLAT), de outubro de 1997, prevê que o Ministério da Justiça é o primeiro responsável por autorizar qualquer tipo de colaboração jurídica entre investigadores brasileiros e estadunidenses.
O próprio Aras se mostrou preocupado. “Delta, como já conversamos, essa investigação dos americanos realmente me preocupa. Fiquei tranquilo quando você garantiu que esse grupo de americanos não fez investigações em Curitiba quando esteve aí”, escreveu em mensagem de texto endereçada a Dallagnol.
“Pelo que entendi não há nenhum papel firmado por vcs concordando com tais viagens, ou há? Esse é o ponto da minha preocupação”, perguntou Aras.
“Nenhum papel nosso concordando, com certeza”, Dallagnol garantiu. “Melhor assim. Joia”, respondeu o colega.
Ao DCRI, Aras e Dallagnol afirmaram que a presença americana era de interesse da Justiça brasileira, porque facilitaria “a formalização de futuros pedidos de cooperação, por intermédio da autoridade central”, ainda que, de acordo com o MLAT, o governo brasileiro possa negar qualquer tipo de colaboração caso venha a “prejudicar a segurança ou interesses essenciais” do país.
Depois da reunião entre os investigadores brasileiros e estrangeiros, o procurador Orlando Martello, da equipe de Dallagnol, rascunhou um e-mail aos americanos aconselhando-os a conduzirem as entrevistas com os delatores brasileiros em território estadunidense, para que não precisassem se submeter ao acordo bilateral entre os países.
Ele se ofereceu para “pressioná-los um pouco para ir para os EUA, em especial aqueles que não têm problemas financeiros, dizendo que essa é uma boa oportunidade”. Ainda sugeriu que os americanos fizessem interpretações “mais flexíveis” da lei e de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).
Dois meses após a visita dos americanos, Dallagnol afirmou a Aras que o DOJ “teve encontro formal com os advogados dos colaboradores, e a partir daí os advogados vão resolver a situação dos clientes lá… Isso atende o que os americanos precisam e não dependerão mais de nós”.
A partir desse momento, a avaliação de Dallagnol era que os “EUA estão com faca e queijo na mão”; e de Aras, que faltava reciprocidade.
Os acordos de delação nos EUA estão sob sigilo até hoje. Em setembro de 2018, a Petrobras fechou um acordo para finalizar as investigações nos EUA e pagou uma multa de US$ 853 milhões.
Ao The Intercept Brasil, a assessoria de imprensa da Operação Lava Jato afirmou que “eventuais reuniões com autoridades alienígenas — e foram dezenas, algumas presenciais e outras virtuais com diversos países — não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados”.
Vladimir Aras defendeu a constitucionalidade da ação e afirmou que os procuradores da operação “não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer autoridade do Poder Executivo”. O Departamento de Justiça dos EUA não se posicionou.
Edição: Leandro Melito