Letícia Sepúlveda, filha e neta de sertanejas, fala da produção e das histórias contadas no filme
Com um sotaque paulistano, mas identidade sertaneja, a jornalista Letícia Sepúlveda é a diretora do filme Sertanejas: A luta pela igualdade de gênero no sertão cearense. Ela conversou com o Brasil de Fato sobre o documentário, o machismo, a seca no nordeste e a resistência dessas mulheres.
O filme foi produzido como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no final do ano passado, mas se propõe a ser mais do que isso. Letícia nos conta que quer fazer com que o documentário seja visto por mulheres que se reconheçam nas personagens reais que ela reencontrou, conheceu e conversou em Jaguaretama (CE), cidade do sertão do Ceará onde nasceu sua mãe, sua avó e de onde descende toda a sua família materna.
O filme conta, pelas vozes e com o protagonismo delas mesmas, como essas mulheres enfrentam o machismo e o patriarcado enraizados na sociedade. São mulheres jovens, mulheres idosas, solteiras, casadas, viúvas, com e sem filhos. Mulheres que, mesmo que não saibam o significado teórico da palavra "feminismo", são feministas na prática. Pois lutam todos os dias por sobrevivência, resistindo aos padrões impostos e ousando ser a flor que nasce no chão rachado em meio a seca sertaneja.
O documentário começa com Letícia perguntando à dona Antônia se ela já tinha ouvido falar sobre feminismo. Dona Antônia responde:
Feminismo? Como assim?
A próxima entrevistada é Rita, que pergunta à Letícia:
Feminismo é sobre mulher?
A terceira é Vitória, uma jovem de 18 anos que, como dona Antônia e Rita, nasceu e cresceu em Jaguaretama. Vitória fala:
“Até a questão que eu entendo é sobre salários, né? Da mulher ter igualdade, ter aquele certo valor do salário. São poucas coisas que eu entendo sobre o feminismo, porque aqui não tem muito disso. A gente não tem muito acesso a esse tipo de conversa. A gente meio que se coloca no lugar da gente, entre aspas né, porque a gente tem que aguentar muita coisa calada aqui no sertão."
:: Confira o documentário completo ::
Parafraseando Euclides da Cunha, a diretora afirma que “toda sertaneja é, antes de tudo, uma forte". E foi esse o tom dado por ela em toda a produção do documentário, como também em nossa entrevista.
“Elas trabalham na roça, elas criam os filhos, elas são a fonte de renda, sabe? Elas não dependem dos maridos. Elas estão lá buscando o espaço delas. E eu sempre vi a minha avó como um mulherão. O documentário surgiu dessa inquietação que eu tinha sobre o movimento feminista. Ele muitas vezes não chega nas mulheres que estão afastadas dos centros sócio-econômicos e que são o exemplo da luta pela igualdade de gênero” comenta a diretora
Para Letícia todas elas são feministas:
Sim, todas elas são feministas. Mesmo que elas não falem ‘eu sou feminista’, o cotidiano delas é de uma mulher que está em luta
A diretora desenvolve com elas o protagonismo que nunca - ou poucas vezes - antes lhe foram permitidos. Elas falam sobre ser mulher. Ser mulher no sertão. Dos preconceitos, das desigualdades. De maternidade solo, mesmo casadas. De maternidade dos seus próprios irmãos órfãos de mãe. Falam de trabalho, de família, de amor, de lembranças. Falam da seca e de tempos difíceis. Falam da violência. Falam de machismo e de feminismo.
Durante a entrevista Letícia falou de uma senhora, conhecida de sua avó, que seu tio a levou para que pudessem conversar. Essa senhora morava com o marido em uma região do município onde existem assentamentos rurais. Chegando lá, a senhora muito simpática, abriu a casa para Letícia e seu tio e logo começaram a conversar, mas ela demonstrava vergonha em falar e principalmente em ser filmada.
"Então eu tentei perguntar pra ela como que tinha sido a transição da cidade para o assentamento. Foi aí que ela começou a falar e a se enrolar um pouco. Então o marido dela disse 'não, ela não sabe falar sobre isso, não. Eu sei falar sobre isso'. E aí ele entrou na frente dela, literalmente, na frente da câmera. Foi uma situação de silenciamento real, explícita, invalidando o que ela estava falando." explica a diretora
Mas embora com contradições impostas pelo patriarcado, Letícia reafirma a importância do documentário para o reconhecimento delas enquanto mulheres em luta, enquanto coletivo e sujeitas de suas próprias histórias.
“Eu percebia que elas gostavam daquele momento que elas estavam tendo para falar sobre a vida delas, pra falar sobre o que elas sentiam. E eu acho que quando elas viram o vídeo, quando elas viram as outras mulheres falando, acho que elas não se sentiram tão sozinhas. Porque quando você vê uma mulher próxima, com memórias parecidas, com vivências parecidas, você não se sente sozinha. Então eu acho que o documentário foi muito importante no sentido delas se reconhecerem e reconhecerem que elas não estão sozinhas e que tem gente interessada na história delas”.
Letícia está tentando a exibição do filme pela TV Cultura, assim como pensa em realizar cine-debates para a divulgação do projeto. Esta matéria também têm o objetivo de dar visibilidade não somente aos quase 30 minutos do audiovisual, mas a todas as histórias contadas, a todas as vidas vividas, a todas as resistências construídas cotidianamente por essas Marias, Antônias, Goretes, Maíras, Beonides, Ritas, Judiths, Vitórias, Socorros, Ivones, Conceições, Solanges e tantas outras que nem sabemos os nomes, mas que podemos ver e reconhecer nelas as mulheres do povo brasileiro.
A fala de Vitória, ao fim da exibição do filme, sintetiza um sonho cultivado em meio à seca e à vida sertaneja.
“Eu quero ser feliz. Esse é o meu foco. Eu quero ser feliz. Só, ou com alguém, eu quero é ser feliz. Família pra mim é o mais importante. Eu estando com minha família e com meus amigos, eu acho que esse é o importante. Se eu ficar para titia eu não me importo. Eu estando feliz é o que importa”.
Edição: Lucas Weber