O prazo máximo de 30 dias definido por lei para que o governo e órgãos públicos respondam aos pedidos de acesso à informação está suspenso durante a crise causada pelo coronavírus no Brasil.
A determinação estabelecida pela medida provisória (MP) 928, editada na noite desta segunda-feira (23) por Jair Bolsonaro (sem partido), alega que a decisão foi tomada em razão do regime de quarentena e teletrabalho dos servidores em meio ao combate à covid-19.
Publicado em edição extra do Diário Oficial da União, o texto estabelece que os pedidos relacionados com medidas de enfrentamento a emergência de saúde pública da pandemia sejam atendidos prioritariamente.
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Já as demandas que não forem respondidas deverão ser reiteradas no prazo de dez dias contados a partir da data em que se encerra o reconhecimento de calamidade pública no país, determinada pelo Decreto Legislativo nº6, no último dia 20 de março, até 31 de dezembro.
Ou seja, a partir da nova MP, os pedidos de acesso à informação – que permitem monitorar as ações dos governos e órgãos públicos em diversas áreas – poderão ser respondidos apenas em 2021.
Instrumento de transparência
Com as mudanças na lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, organizações da sociedade civil tem se manifestado de forma crítica à medida.
Marcelo Trasel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investivativo (Abraji), afirma que a entidade recebeu a nova determinação com surpresa, já que o próprio decreto que regulamenta a lei prevê a justificativa de órgãos públicos negar pedidos pela falta de disponibilidade de funcionários ou em casos em que as demandas são avaliadas como desproporcionais, onerando a autoridade pública.
“É uma MP um tanto quanto confusa porque diz que vai priorizar os dados sobre coronavírus, mas ao mesmo tempo diz que não serão aceitos recursos e isso é muito grave porque o recurso, em geral, é o momento em que os órgãos públicos são de fato obrigados a explicitar e argumentar por que negaram o pedido. Os recursos são um instrumento de transparência muito importância pra lei de acesso”, explica Trasel.
Na visão do presidente da Abraji, a nova MP abre margem para que a administração pública negue os pedidos com base em argumentos frágeis ou insuficientes.
“Com isso o que podemos ter é uma discricionariedade das repostas. Mesmo se pegarmos os casos agora da epidemia, alguma secretaria de saúde municipal ou estadual pode escolher esconder dados a respeito das infecções, e não haverá uma forma do cidadão questionar qualquer decisão nesse sentido. Não vai dar pra saber se os dados estão sendo escondidos ou não, por exemplo”, complementa.
Alguma secretaria de saúde municipal ou estadual pode escolher esconder dados a respeito das infecções, e não haverá uma forma do cidadão questionar qualquer decisão nesse sentido.
Trasel destaca ainda que para atender grande parte dos pedidos de acesso à informação, os servidores públicos não precisam estar na repartição, já que o processo é eletrônico e pode ser acessado remotamente.
O jornalista cita que, com a nova medida, as irregularidades que anteriormente já eram cometidas pela administração pública tendem a piorar.
“Mesmo com a possibilidade de recurso que existe hoje, já vemos abusos em relação à lei de acesso, algumas autoridades tentando esconder informação de alguma maneira ou dificultar o acesso à informação a que todo cidadão no Brasil tem direito. Essa MP pode tornar esse tipo de prática mais comum, facilita esse tipo de tentativa de burlar a lei de acesso ou esconder informação sensível”.
"Pescaria"
Segundo levantamento inédito feito pela Agência Pública, apenas sob a alegação que os cidadãos estavam realizando “pescaria” de informações públicas, o governo Bolsonaro negou 45 pedidos de informação em seu primeiro ano de gestão, mais de cinco vezes o total de negativas em 2018, durante a gestão de Michel Temer.
Em nota enviada à reportagem do Brasil de Fato, a Transparência Brasil, organização independente e autônoma que tem como principal objetivo a luta contra a corrupção no país, também criticou a medida
“É um ataque ao direito de acesso às informações justamente em um momento em que precisamos de mais transparência. O texto abre inúmeras possibilidades de negativas a pedidos de informação, sem limites claros, e inviabiliza a apresentação de recursos contra essas negativas - na prática, prejudica uma parte fundamental da aplicação da LAI no Executivo federal. Sem pleno acesso a informações, não é possível monitorar as ações e gastos do poder público no combate à pandemia”, diz o texto.
Fiscalização ameaçada
O Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo também se manifesta de forma crítica à Medida Provisória 928. Paulo Zocchi, um dos diretores da entidade, afirma que na situação da pandemia em que vivemos, uma das principais armas para combater a covid-19 é o amplo acesso à informação.
Zocchi ressalta que ressalta que Jair Bolsonaro tem um histórico de desqualificação do trabalho da mídia de maneira geral e considera o governo como um inimigo da informação, e, com a medida, visa dificultar a fiscalização dos poderes da República.
“A LAI obriga o Estado brasileiro e os governantes a cederem informações que eventualmente não querem dar, mas ela obriga. É uma ferramenta de controle da sociedade sobre o Estado e sobre a lisura e correção de coisas que são feitas, e por outro lado, é uma ferramenta de denúncia de maus feitos e favorecimentos ilícitos”, comenta o sindicalista.
“Estamos na presença de um governo que infelizmente adota uma posição de favorecimento ilícito em diversos casos, que estão fartamente denunciados. Bloquear nesse momento a LAI é uma medida que esse governo já havia ensaiado outras vezes, jornalistas já tinham dificuldade em ter acesso a diversas situações que a lei previa acesso, e agora eles se aproveitam da situação pra restringir ainda mais o acesso”, acrescenta.
Tania Oliveira, coordenadora executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), opina que adotar uma Medida Provisória para restringir a lei de acesso à informação não se justifica neste momento, já que não é uma decisão com caráter de urgência.
Para ela, a determinação de Bolsonaro “é ocasional e oportunista”. A jurista relembra que a MP foi aprovada dois dias após o The Intercept Brasil fazer uma denúncia de que a empresa Farma Supply, do bolsonarista Marcelo Sarto Bastos, ganhou dois contratos do Ministério da Saúde para a compra de máscaras cirúrgicas 67% mais caras do a de outra concorrente.
“É um ótimo exemplo de como a transparência é fundamental nesse momento, para que se denunciem os desvios que podem ocorrer nesse período. O governo não pode usar isso [a quarentena] como motivação para restringir, lato sensu, a informação que ele tem obrigação de prestar. Ele está usando a MP como desculpa, como motivação, os servidores. Mas na verdade o que está fazendo é restringindo o acesso à informação para se proteger”, analisa.
O governo não pode usar isso [a quarentena] como motivação para restringir, lato sensu, a informação que ele tem obrigação de prestar.
“Restringir a informação e a transparência é uma das razões potencialmente mais perigosas em tempos de calamidade pública, sobretudo, com o governo que nós temos”, alerta.
Vaivém
O último dispositivo da MP 928 revoga o artigo 18 da MP nº 927, publicada no último domingo (22), alvo de duras críticas ao presidente. O dispositivo autorizava a suspensão de contratos de trabalho por quatro meses sem remuneração.
Pressionado, Bolsonaro recuou neste ponto mas manteve os demais itens da medida que altera as relações trabalhistas no país, entre eles um item que afeta diretamente os trabalhadores de saúde que atuam no combate ao coronavírus.
O texto instaura um regime especial de compensação de horas para trabalhadores da área de saúde por meio de acordo coletivo ou individual, permitindo que eventuais horas extras computadas durante o período da crise possam ser compensadas em até 18 meses.
Edição: Rodrigo Chagas