PGR ignorou possível infração de medida sanitária preventiva, cometida por Bolsonaro
Por Marília Lomanto*
Na última sexta-feira (27), o procurador-geral da República, Augusto Aras, arquivou medida que pedia que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sofresse ação coibitiva por suas atitudes irresponsáveis durante a pandemia do coronavírus no Brasil.
A partir do ocorrido, pergunto-me: o Ministério Público (MP) está cumprindo as funções que a Constituição de 1988 lhe atribuiu?
Essa pergunta remete a algumas reflexões. A primeira delas vai no sentido de situar a Instituição na rota histórica percorrida até a Constituição de 1988. A segunda busca pensar o lugar pensado pelo constituinte para que o MP exercesse suas funções, ou seja, na realidade social, política e econômica de um espaço-tempo determinado. A terceira reflexão trata da efetiva atuação do órgão na Carta Política de 1988, dentro das expectativas de uma sociedade contemporânea plena de conflitualidades e de desigualdades sociais que ameaçam a própria dignidade humana.
O Ministério Público tem um lugar de fala historicamente indefinido. No mundo antigo, ele tinha a função de observador a serviço do rei, reprimindo e castigando insurretos com violência, a fim de manter a vontade real. Segue até final da Idade Média, chegando ao publicismo napoleônico, de sua origem ao gens du roi (agente do rei), substituindo a acusação privada pelo discurso acusatório oficial. No Estado Moderno, reativo ao absolutismo, o Ministério Público suplanta o mero caráter repressivo e passa a solucionar contendas.
No Brasil, evidenciam-se tanto a instabilidade constitucional das atribuições do Ministério Público, quanto a influência do poder político que determina seu espaço físico-existencial. Nas Ordenações do Reino, tinha por função requerer tudo que se relacionasse à Justiça. Na constituição iluminista do Império (1830), denunciava crimes políticos e policiais. Na primeira Constituição da República (1892), fazia parte do Judiciário e do STF.
A Constituição de 1934 se limitava à previsão organizacional do Ministério Público por lei federal, enquanto que a de 1937 apenas fazia alusão ao Procurador Geral da República. No seu percurso histórico, um Ministério Público desconectado de qualquer um dos poderes, com título próprio, é o que se revela à leitura da Constituição de 1946. Em 1967 e na Emenda Constitucional de 1969, nas quais os direitos e as garantias constitucionais estavam sob forte limitação, o Ministério Público integrava o Poder Executivo, sendo um aparato a serviço do Estado.
Constituição de 1988
A Constituição Federal de 1988 se credencia como marco histórico para o perfil institucional do Ministério Público com caráter de permanência, imperativo para a democracia e defesa de direitos coletivos e individuais, com possibilidade jurídica de fazer valer, mediante sua intervenção, os direitos constitucionais garantidos, zelando para que as autoridades cumpram tais imposições. Assim, a ingenuidade da militância de 1988 fez o Constituinte avançar, erguer a Instituição do “tamborete” onde vivia sentado na função de “gens du roi” e propõe um conceito que anima uma relação de amor (hipotética) entre as forças populares e esse Aparato Repressivo de Estado.
Desse modo, a descrição do artigo 127 carrega nas cores da função social que seria fundante desse velho inimigo, eleito novo “parceiro” da sociedade civil na defesa de seus direitos. O artigo prescreve: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Não parou aí. Deixou patente o fazer e o existir do Ministério Público, quando desfia, no artigo 129, o rosário de funções institucionais, merecendo ressaltar o Inciso II do citado dispositivo, que explicitamente prescreve a atribuição de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.
Para tanto, oferece mecanismos aptos a essa intervenção, de modo a autorizar aos destinatários das funções do Ministério Público, ou seja, às grandes massas, a oportunidade de serem sujeitos de sua própria história, decidirem sobre seus interesses e necessidades, terem acesso à Justiça e garantirem, elas próprias, seus direitos.
Pandemias
A humanidade já enfrentou graves pandemias que produziram morte, dizimaram e reduziram populações. A Europa da segunda metade do Século XIV conheceu a pior delas, a Peste Negra. Entre 1918 e 1920, cerca de 50 milhões de pessoas morreram com a Gripe Espanhola, inclusive Rodrigues Alves, presidente do Brasil.
Surtos de Ebola em 1976, 1995 e 2007 mataram mais de 12 mil pessoas. Em final de 2019, o mundo se assustou com o novo coronavirus, ou covid-19, afetando gravemente países como China, Itália e Espanha e se espalhando por países e continentes, chegando inevitavelmente ao Brasil. O covid-19 vem gerando medo e insegurança pela facilidade com que o vírus se espalha, impondo à OMS declarar a pandemia, indicando os governos a trabalharem na perspectiva “não mais para conter um caso, e sim para ativar ações para atender a uma parcela da população mais ampla e vulnerável”, reduzindo os danos e evitando mortes.
A partir de evidências científicas, da OMS e das autoridades sanitárias lideranças, começaram a adotar as orientações apresentadas como vitais para garantir o denominado “achatamento” da curva ascendente em direção a morte de contaminados, em especial, idosos, portadores de doenças crônicas, a princípio, atingindo, entretanto, a população mais jovem. Foram adotadas medidas restritivas ao funcionamento do comércio, da indústria, de estabelecimentos escolares, de diversão e fechamento de aeroportos e fronteiras, evitando aglomeração e potencializando o distanciamento social, considerada a mais simples e essencial conduta para evitar a transmissão do vírus.
Banalizando a pandemia
Contrariando essas recomendações, Jair Bolsonaro não apenas banalizou a pandemia, que chamou de “resfriadinho” e de "gripezinha”, como estimulou o desrespeito às recomendações de seu próprio Ministro de Saúde, provocando aglomeração, estimulando manifestações por todo o pais, que aconteceram de fato, portando faixas insuflando o fechamento de instituições da República.
Os discursos e o comportamento de Jair Bolsonaro, além de incompatíveis com a gravidade do momento, com a postura de quem se dispôs a presidir um pais, alimentam a volta do povo às ruas. Não satisfeito, circulou por Brasília, fazendo declarações que escandalizaram o pais, o mundo e a imprensa estrangeira, provocando reação de diversos e inúmeros setores institucionais e da sociedade civil organizada.
Violações constitucionais
Diante desse contexto, a Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão e mais 17 subprocuradores da República oficiaram a Augusto Aras, procurador-geral da República, solicitando a proposição de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ação coibitiva de violações à Constituição.
No documento, anunciam que o governo Bolsonaro descumpre o artigo 196 da Constituição, que trata do direito à saúde. Por conta disso, pedem que Aras acione o Supremo Tribunal Federal (STF) com relação à propaganda governamental de estímulo ao retorno às ruas, com riscos à saúde e à vida da população, e em desfavor do decreto presidencial permissivo do funcionamento de casas lotéricas e cultos religiosos, incluídos na categoria de atividades essenciais, afrontando, desse modo, as medidas de isolamento que resguardam a população.
A resposta do procurador-geral foi arquivar o pedido, argumentando, segundo nota divulgada em site, que, "neste momento em que o país atravessa estado de calamidade pública, exige-se que o Ministério Público brasileiro mantenha-se afastado de disputas partidárias internas e externas, sem entraves à atuação dos órgãos competentes no cumprimento de seus deveres, a fim de que todos vençamos o coronavírus".
Uma nota assinada por sete associações chama as falas do presidente de "incoerente e criminosa". O documento cita um artigo do Código Penal Brasileiro que Bolsonaro teria violado e classifica de "discurso da morte" os pedidos presidenciais.
"O sr. Jair Bolsonaro nega o conjunto de evidências científicas que vem pautando o combate à pandemia do covid-19 em todo o mundo, desvalorizando o trabalho sério e dedicado de toda uma rede nacional e mundial de cientistas e desenvolvedores de tecnologias em saúde", consideram as sete entidades de saúde que assinam a nota.
O comunicado aponta, ainda, possível crime cometido pelo presidente, a "infração de medida sanitária preventiva", que consta no Código Penal Brasileiro. O artigo 268 diz que é crime "Infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa", crime para o qual é prevista a pena de detenção de um mês a um ano e multa.
Na nota, as entidades de "saúde coletiva e da bioética consideram intolerável e irresponsável o 'discurso da morte' feito pelo Presidente da República". O documento é assinado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pelo Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), Associação Brasileira da Rede Unida, Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), Associação Paulista de Medicina (APM) e Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).
Segundo as entidades de saúde, o "pronunciamento perverso" de Bolsonaro "pode resultar em mais sofrimento e mortes na já tão sofrida população brasileira, particularmente entre os segmentos vulneráveis da sociedade".
Na petição, o deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) pede que o Ministério Público (MP) acuse o presidente de colocar em risco a saúde dos brasileiros em seu pronunciamento da semana passada sobre a pandemia de coronavírus.
Marco Aurélio Mello decidiu enviar os autos do processo para a PGR. "Deem vista à Procuradoria-Geral da República", diz trecho da decisão do ministro.
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.
Edição: Vivian Fernandes