A corrida aos supermercados no início da pandemia do coronavírus (covid-19) no Brasil e a falta dos mesmos alimentos nas prateleiras revelam mais que o pânico social, denunciam os vícios nos hábitos alimentares da população.
Para a museóloga e proprietária do sítio Verde Viver (RS) Kátia Almeida, que produz alimentos em uma agrofloresta e recebe eventos ecológicos, o momento mostra que a alimentação é monótona e homogênea. “A maioria das pessoas come sempre as mesmas coisas, já estão habituadas a comerem os mesmos alimentos. Isso reflete diretamente na diversidade do paladar e nos nutrientes que consomem”.
Kátia ainda ressalta que em muitos casos, o acesso à comida está ligado ao acesso à informação. “Há muitos alimentos subutilizados, que acabam indo fora porque as pessoas não sabem como usá-los. Por exemplo, as folhas da batata-doce, os produtores acabam colocando fora, ou usando para adubo, é um alimento riquíssimo e utilizado na culinária em outros lugares.” Kátia tem razão.
A FAO, sigla em inglês para Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, revela que a humanidade já se aproximou de cerca de 7 mil possibilidades alimentares e que atualmente, por ano, a população se alimenta de somente 120 espécies de plantas. “Desse número, mais de 50% da alimentação das pessoas é formada por apenas três tipos de grãos e um cereal: arroz, milho, soja e trigo”, explica a nutricionista e comunicadora popular Bruna de Oliveira.
Para a profissional, o uso restrito da variedade alimentar está diretamente ligado ao sistema de produção e distribuição de alimentos hegemônico. “Homogeneizar as espécies de cultivo é estratégico para que se possa produzir em larga escala em um sistema agroalimentar que necessariamente faz uso de pacotes tecnológicos predatórios, que inclui sementes geneticamente modificadas ou transgênicas, fertilizantes sintéticos e agrotóxicos, por exemplo. Essa forma de cultivar alimentos restringe toda uma diversidade e possibilidade alimentar que temos e que poderia ser acessível a todos”.
Tem comida em todo lugar
Uma alternativa apontada pela nutricionista está nas Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC), “que podem ser encontradas em diversos lugares, inclusive em praças, quintais domésticos ou terrenos baldios”, destaca Bruna, que pesquisa sobre esses alimentos há 10 anos.
As PANC são plantas ou partes de plantas que são subutilizadas ou negligenciadas na alimentação, muitas delas se caracterizam por se desenvolverem de forma espontânea e são consideradas mato ou inço por muitas pessoas. A falta de conhecimento sobre o potencial desses alimentos é uma das barreiras para que eles não sejam popularizados.
“Muitas plantas não são consumidas, pois as pessoas não sabem o que é, e muitas vezes o próprio produtor rural ecológico tem até vergonha de levar à feira. Muitos desses alimentos foram considerados historicamente comida de bicho, algo sem valor. Um exemplo desses alimentos são as folhas da beterraba e o coração de bananeira, que muitas vezes são descartados”, explica Kátia. Ela também lembra do não aproveitamento integral dos alimentos já conhecidos. “Nós descartamos partes alimentícias não convencionais das plantas também, como da cenoura, que poderiam ser incluídas em nossa alimentação, seja como complemento ou como prato principal.”
As plantas da mata
Além da falta de informação, as PANC esbarram no preconceito, como explica a pesquisadora e professora do Centro de Ciência Agrária da Universidade Federal de Alagoas, Patrícia Muniz. “Em ambientes rurais, especialmente no semiárido brasileiro, muitas destas plantas costumam remeter a períodos de seca e pobreza, quando plantas convencionais não estavam disponíveis para consumo e as pessoas só contavam com as ‘plantas da mata’. Por isso, elas acabaram por se converter em um tabu alimentar para alguns grupos de pessoas. Já em ambientes urbanos, um fator importante é a própria aversão que as pessoas têm, em maior ou menor grau, de consumir comidas desconhecidas.”
Para a pesquisadora, esse comportamento foi privilegiado pela evolução humana e em muitos casos impediu o consumo de coisas potencialmente tóxicas. Entretanto, nos dias de hoje, “essa relutância faz com que muita gente crie expectativas negativas quanto ao sabor ou potencial nutricional das PANC antes de sequer prová-las”, opina Patrícia que acredita na mudança desse cenário com a utilização dessas plantas em restaurantes e na disseminação pela mídia e influenciadores digitais.
O consumo de PANC também está diretamente ligado às diferenças regionais do Brasil. Cada região possui características próprias que desenvolvem diferentes espécies de Plantas Alimentícias Não Convencionais. “Muitas dessas plantas já são extremamente populares, especialmente no meio rural, entre pessoas que possuem conhecimento tradicional associado à natureza. Em áreas urbanas há locais nos quais as PANC estão ganhando bastante notoriedade, graças ao trabalho e entusiasmo de algumas pessoas”, destaca a pesquisadora que foi contemplada com o prêmio internacional Women in Science International Awards pelo seu trabalho sobre a popularização das PANC.
Para saber mais
No Brasil, o trabalho pioneiro sobre as PANC e o registro das espécies é do professor e pesquisador Valdely Kinupp, que cunhou o termo Plantas Alimentícias Não Convencionais e catalogou mais de 300 espécies em sua tese de doutorado, que deu origem ao livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil. Você pode acessar a tese aqui.
A nutricionista Bruna de Oliveira promoverá um curso online sobre as PANC, como identificá-las e suas aplicabilidades culinárias, no próximo dia 13 de abril. As inscrições para a formação “Mato é comida? Conheça as PANC” podem ser feitas por aqui.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Larissa Gould e Katia Marko